Espelho

Crianças, em casos menos graves. Alguns eram velhinhos, embora não fosse geriatra. Deitaram-se à minha frente homens e mulheres de todas as expressões, raças, rostos, envergaduras e olhares diferentes acorridos por testemunhas de toda espécie de trauma.
A leitura dos seus cortes, perfurações, pancadas e queimaduras em vários graus me davam indícios de fios de vida aos quais eu os puxava de volta, em alguns casos sem sucesso. E ali, na janela da alma, é que encontrava a condição da sobrevivência de cada um.
Entre os conscientes, os que se deixavam balangar pela maca sucumbiam por falta de estima, futuro ou desistência. Seus olhares opacos, perdidos em quaisquer paredes, evitavam cruzar a firmeza ou a esperança dos meus. Os que agarravam meu braço e me sacudiam a experiência como filho de Esculápio, enervados, campeadores de espada em riste brigando contra a morte, atento a tudo e a todos, voltavam para casa, diferentes.
Entre os desfalecidos, o corpo amarrado e a alma quase solta, cabia-me averigua-la abrindo-lhe as pálpebras. As sombrias e desalentadas não estancavam sob a minha sutura desesperada e não podia trazê-las de volta quando queriam partir. E ali não adiantavam as minhas primeiras barbas brancas, nem minha alta estatura, nem meu anseio pela salvação.
E ali, naquela tarde, diante de tanto espalhafato, sirene, multidão e tragédia, dor e fuga, perseguição e morte, deitam-se à minha frente os meus cabelos cacheados, o mesmo corte, o mesmo comprimento.
A mesma barba castanha por meio de onde surgiam os primeiros fios brancos, quase raspada como a minha. A mesma estatura, alta, proeminente, reconhecida em seu ofício, destacada por honra ao mérito, escancarada por diligência a si mesmo. O mesmo anel dourado no anular, a mesma constituição, os ombros largos e o mesmo porte atlético, machucado sem que tivesse culpa.
Pelas pálpebras se abrem os mesmos olhos verdes, expressivos, cheios de vida, passado afincado, futuro promissor, presente suspenso. Pelas pálpebras me vem o terror da simbiose, viagem de corpos, troca instantânea de almas como se a ferida fosse a minha, a camisa rasgada fosse o meu número, sangrando do meu peito sobre os mesmos pelos negros, de onde gritava por vida um coração desesperado. E o desespero era o meu, em pé ou deitado talvez viéssemos da mesma fôrma e talvez não vivêssemos o mesmo tempo se a nossa competência não se encarregasse de salvá-lo.

Muito barulho por nada

Caríssimos senhores. Prezadas senhoras e senhoritas. Imaginativos de plantão. Visualizem um rapaz. Pode ser loiro ou moreno, alto ou mediano, bem vestido ou apenas normal. Como desejarem. Mas precisa ser trabalhador. Já sei. Vão me dizer que por ser um homem de negócios precisa estar bem alinhado, barbeado, cabelos curtos e bem cortados. Tudo bem, é verdade. Um executivo, mas nada de terno Armani. Ele ganha muito bem, mas esbanja também. O dinheiro entra por um bolso e sai pelo outro.
Visualizaram? Boa pinta, não é? Mora sozinho, tem o seu canto e é vaidoso. Imaginem um tipo atlético, destes que não faltam à academia. As mocinhas ficam em polvorosa quando ele chega. Mas elas que tirem os corpinhos da chuva: ele é fiel à aliança prateada no dedo.
Vamos dar-lhe um pouco de fidelidade. Bem pode cair nos braços das beldades do seu convívio, mas o rapaz é do tipo romântico. Destes que ainda mandam flores, abrem as portas e ajeitam a cadeira para as donzelas.
A eleita é uma moça seleta e abastada, uma morena esguia e bela, de olhos tão brilhantes quanto as suas jóias. Vão a restaurantes famosos e ele lhe dá tantos presentes que nem os amigos nem o coração admitem seu extrato no vermelho. Eis a questão, senhoras e senhores. E senhoritas: o nosso rapaz é um apaixonado. Destes fisgados de jeito.
Imaginemos mais da vida dele. A família mora numa cidade qualquer do interior que ele pouco freqüenta. Resta-se com a sua megalópole, amor de primeira vista. Cresce nos bons colégios e tem boas e duradouras amizades. Freqüenta bons clubes e tem bons relacionamentos. Como é nadador por excelência, cultiva o hábito social de beber raramente. A maior parte do seu tempo passa envolvido com o trabalho, pelo qual é bem remunerado, como combinamos.
O problema dele é mesmo a paixão, que os senhores devem conhecer bem. O mundo dá voltas e ele só tem olhos para ela. A família lá longe e os amigos ali perto reclamam da sua ausência. E a moça acha tudo lindo: o rapaz só para ela, presentes caros, badalação, festas e tal.
Pois é. Adivinharam, hein? Não, não está. A moça ainda não está satisfeita. Quer uma prova maior do amor do rapaz. Assim, uma coisinha mais concreta. Para as amigas morrerem de inveja, sabe? E o jovem, deslumbrado, mete-se pela cidade atrás de um presente de valor. Mas vejam, senhoras, a ironia: sem encontrar nada inédito ou à altura da noiva, o rapaz se aconselha com a futura sogra. A madame lhe conta que o marido, um banqueiro conhecido, cravejou-lhe definitivamente o coração no dia em que os seus diamantes pousaram às suas vistas, rodeados de veludo, presente de casamento. Imaginem, senhoritas, que a mãe da moça sugere que ele faça o mesmo.
Ele ganha bem, certo? É bem apessoado, inteligente e querido no ambiente de trabalho. O destino aqui facilita a vida dele, o que acham? Poxa, o rapaz dá duro há anos, vai se casar logo em breve: os seus superiores dão-lhe uma chance de administrar uma campanha pomposa, com a conquista da qual terá mais responsabilidade e será portanto mais bem remunerado. Concordem comigo: o rapaz acha uma incrível coincidência a oportunidade de promoção e tal, bem quando a madame lhe sugere o anel. Demais, hein?
Pois bem. Os objetivos do rapaz se voltam para o possível cliente. A indicação do nome dele para encabeçar a campanha é a chance da sua vida. Os amigos e a família desistem dele de vez. Ele vai querer ganhar aquela conta, senhores, propaganda é a alma do negócio e a dele também. Vai se dedicar à questão com disciplina etrusca. Vai acordar, respirar, almoçar e dormir a campanha. Sonhar também. O sonho do moço é se estabelecer na agência e fazer carreira como publicitário de sucesso. Pela primeira vez se mete no topo do negócio e já tem chances.
Vencedor, terá o privilégio de gerir a conta, de uma empresa francesa; talvez fossem morar em Paris, a cidade das luzes, do romantismo! Convenhamos, aquilo vai consumir o rapaz! E então, com avidez à proposta e descabido empenho arremata a questão. Sai triunfante da concorrência e entra para o rol dos egrégios, aclamado na agência como herói da conquista – confessada depois – dada como perdida. Um segredinho aqui: ele fica meio triste quando sabe disso, mas tudo bem. Ah, quer saber mesmo? Depois ele se orgulha do que fez, batendo no peito com jeito de altivo.
Alçado à categoria de estrela, o rapaz descobre que vai mesmo a Paris sob instalação da agência e vai viver em Montparnasse, vizinho ao Musée D’Orsey, num desbunde. Decide prorrogar seu casamento e o anel da noiva vai ficar para depois por que agora o rapaz está nas alturas. Mal pode acreditar, de mala e cuia pousando no Charles de Gaulle Aéroport. A noiva, senhoritas, fica no Brasil até que ele se estabeleça. Fica meio abatida, mas evita contrariar o moço.
E eis que...
Eis que...
Senhoras, senhores e senhoritas:
Eis que ele se apaixona por outra!
Por alguém que ele conhecia muito bem, que vivia com ele, guardada no peito, há muitas primaveras. Estivera relegada, escondida, por todos estes anos. Assim, nos últimos meses, depois de um ardoroso reencontro, os dois se encontravam diariamente e se nutriam como Romeu e Julieta: ele e a publicidade! Aquela entrega, aquela paixão sem freios, aquela profunda dedicação; em plena cidade do amor, senhoras e senhores!
E, senhoritas, perdoem-me, mas a noiva no Brasil vai ficar bem. Logo em seguida ela arruma o herdeiro de uma multinacional. Vai se casar e morrer de amores pelos presentes do marido.
Quanto ao jovem publicitário: ele se dá muito bem na cidade do Louvre, até a joint venture da empresa do seu cliente com a líder mundial do mercado, uma marca alemã. Nessa, ele perde o seu cargo na França e volta à vida de antes no Brasil. Só que agora, sem a noiva.

Combate à maldade

"A única coisa necessária para o triunfo do mal é que os homens bons não façam nada." (Edmund Burke)

A vaca malhada ou a vaca marrom?

Certo dia um jovem empresário viajava pelo interior e, vendo um peão tocar algumas vacas, parou para lhe fazer algumas perguntas:
- Olá, moço! Você poderia me passar algumas informações?
- Claro, uai!
- Essas vacas dão muito leite?
- De qual é a que o senhor quer saber: das maiáda ou das marrom?
- Das malhadas.
- Ah, as maiádas dão uns 12 litros por dia!
- E as marrons?
- As marrons também dão uns 12 litro por dia!
O empresário pensou um pouco e logo tornou a perguntar:
- Elas comem o que?
- Qual? As maiáda ou as marrom?
- Sei lá, pode ser as marrons!
- As marrom comem pasto e sal.
- Hum! E as malhadas?
- Também comem pasto e sal!
O empresário, sem conseguir esconder a irritação:
- Escuta aqui, meu amigo! Por que toda vez que eu quero saber sobre as vacas você me pergunta das malhadas ou das marrons se as respostas são sempre as mesmas?
E o matuto responde:
- É que as maiádas são minha!
- E as marrons?
- Também!

A boa memória

Para aqueles que estão sempre reclamando que a memória vive falhando, aqui vai a indicação de um dos livros mais lindos que eu já li até hoje. Trata-se de muito mais do que simples conselhos: diz-nos como somos desatentos, preguiçosos, levianos, como erramos nas nossas apreciações e observamos muito menos do que deveríamos o universo de coisas que acontecem ao nosso redor. Um livro que rendeu muitos seguidores, das dicas preciosas, das técnicas que ele ensina, vistas e revistas em outros autores. Vale como aprendizado, como ferramenta de expansão e reflexão: sem a memória, não conseguiríamos falar, comer, andar, sentar, viver.
Do prefácio, de Bandeira Duarte: " A memória é uma Primavera de vida, que prolonga a mocidade, permitindo revivê-la ressussitando a emoção que outrora impressionou o nosso cérebro. Esse dom foi, em todos os tempos, objeto de numerosos estudos filosóficos tanto mais interessantes pelo fato de se apresentar em cada indivíduo sob um aspecto diferente. Mas, sendo a memória variável nas suas manifestações naturais, as apreciações interpretativas das lembranças falham na maioria das vezes quanto à unidade. Eis por que se dedicaram sempre à conquista da fixidez na evocação, quer dizer, à cultura de um método que permita adquirir a memória ou desenvolvê-la. Assim, concentraram seus esforços sobre o ensino da arte que consiste em separar os feitos dignos de recordação, ou para dizer melhor, de revivescência, da balbúrdia de adaptações fantasistas com que os historiógrafos mascaram tais fatos. Sob este ponto de vista, a antiga literatura hindu fornece preciosos documentos. O culto da memória foi observado poe esse povo muitos séculos antes da nossa era e muitos séculos depois do período védico, encontramos ainda Asoka Piyardini que, segundo ele próprio dizia, para observar o culto dfa memória, garantindo a sinceridade da lembrança, gravou seus ensinamentos numa pedra para que os fiéis de Brama pudessem evocar através das idades, as doutrinas autênticas professoradas pelos seus longínquos antepassados. Além dele, pelo século XII, Sankara, o continuador do sistema filosófico mais aproximado dessa época, escrevia estas linhas magníficas: 'a memória é uma fonte que vivifica e reconforta aqueles que sabem nela beber.'

Memória

"A verdadeira arte da memória é a arte da atenção." (Samuel Johnson)

O idiota

– Será que você poderia me ajudar? -pergunta alguém.
– Claro. Em que posso ser útil? -respondeu o rapaz.
Essa oferenda era comum na vida dele. Não existia limites. Questões complexas e de alta dificuldade eram simplesmente sorrisos aos lamuriosos. Talvez fosse uma necessidade exposta de protuberante caridade, onde as evasivas e as negações eram um martírio pungente demais para ser anotado no seu histórico.
O rapaz era destes que se comprometia com esforços que não eram os dele e passava seus momentos de liberdade trancafiado nas demandas dos outros. Na verdade se regalava na utilidade das suas ações como se prestasse um serviço para a humanidade. A vida toda ouvira sobre a benemerência, ajudar o próximo, emprestar ao pobre, amar uns aos outros. Aquilo era território sacrossanto para ele, um princípio em princípio inviolável.
Habituou-se à cortesia e de bom grado oferecia a sua saúde e inteligência para a resolução das dificuldades e queixumes dos colegas de classe. Diante dos entreolhares de surpresa, o rapaz vinha sendo eleito o mais querido da turma, quando todos se agrupavam à sua volta em tarefas coletivas. Achava estranho que no recreio se sentisse sozinho, mas em trabalhos em grupo era o maioral.
Cresceu comprando cigarros para os primos, ervilha para a mãe, buscava o jornal na banca e pãezinhos para a tia. Era sempre o escolhido nestas situações. Quando tinha algo a dizer era sempre relegado, mas talvez por que os adultos é que sabiam o que falavam. Passou a infância emprestando os seus brinquedos para as outras crianças e no escorregador era o último da fila por que ele dava lugar para os apressados.
Assim, na juventude, ele continuou a dar passagem e se especializou em favores de todos os tipos, tamanhos e complexidades. Se acontecessem dois pedidos ao mesmo tempo, o jovem se apegava ao mais importante: ensinar matemática à colega de classe era mais urgente do que completar o time do bairro. Aliás, a palavra da mãe era inquestionável: primeiro as obrigações, depois o divertimento. Como de costume, ele obedecia sem ressalvar.
Com o passar do tempo ele foi entendendo os favores. Achava curioso que de tantos esforços poucos agradecimentos recebia em troca. Mas tinha aprendido que deveria sempre se entregar às causas do próximo sem esperar compensação. Por esta razão não se incomodava nem com a falta de um singelo obrigado. Vivia vinculando a sua à vida dos colegas e amigos, conhecidos e parentes como se fosse um chipanzé pulante, de galho em galho na contenda alheia.
Satisfação maior do que aquela não existia. Era bom filho, bom amigo e bom samaritano. Vivia requisitado por todos os cantos e dia não passava sem que lhe solicitassem obséquios. Tanto entendeu do riscado que organizava uma rotina para não ser injusto com ninguém.
Na realidade, se tivesse mesmo alguma afeição de alguém era de seus defensores, alguns professores ou pessoas próximas que já se cansavam dos abusos contra ele. Em episódios de triste falsidade, puxavam o rapaz para um canto e lhe contavam sobre a ingenuidade e sobre os sanguessugas da vida. Mas o rapaz se mostrava contrafeito; feliz que estava, estendendo as mãos aos semelhantes. Além do mais, a vontade de ajudar era dele, como também os desafios e problemas que gostava de resolver por iniciativa própria. Diante de repetidas argumentações, seus defendentes desistiram da questão e os ludibriantes nadaram às braçadas.
Foi quando conheceu o amor que a sua vida mudou. Ele se manteve o mesmo, apenas apaixonado. Estranhou que aquela moça do bairro jamais lhe rogasse uma súplica. Pelo contrário, ela apenas se espantava com alguns pedidos que as pessoas faziam para ele. O moço se lembrava de uma vez, quando a jovem lhe dirigiu a palavra, perguntando por aquela veleidade de cumprir as ordens de terceiros. Então ele sorriu, explicando que crescera no caminho benfazejo, procurando atender a tudo e a todos com toda atenção.
Agora ela reaparecia na sua vida, ex-colega de classe, que seguira a carreira profissional e se tornara uma psicóloga de marca maior. Criou laços profundos com a moça e, nas suas conversas, os dois se afeiçoaram. Do seu emprego ligava para ela e à noite, horas a fio, dedicavam-se a discussões de todos os calibres. Ela se transformou na sua maior favorecida, evitando que os enganadores tomassem o seu tempo. O rapaz ainda se dedicava à peleja alheia, deixando inclusive de visitá-la, mas agradar a moça se tornou mais importante do que tudo e ela aproveitou os preciosos instantes com ele.
Ele então compreendeu que fora injusto com as próprias vontades, deixara de se aplicar aos próprios objetivos e relegara até quase a adultidade os tempos que tinha para si mesmo, para deleite da sua vida, para passear, para se divertir, para praticar esportes, sair, ser livre; delícias as quais abrira mão para dedicação exclusiva do próximo.
Não que lhe fosse proibido prestar seus auxílios, mas como diz em Eclesiastes 3, 1-8, há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu: tempo de nascer e morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar a planta; tempo de matar e de curar; chorar e rir; destruir e construir, de gemer e de bailar, de atirar e recolher pedras, de abraçar e de separar, de guardar e de jogar fora, de rasgar e costurar, de calar e de falar, de amar e de odiar, de guerra e de paz e de buscar tempo e perder tempo. E o jovem chorou. Chorou o entendimento, a raiva, o desprezo, o tempo perdido.
E a moça chorou com ele, uma vida inteira dedicada ao próximo, sem pestanejar. Chorou pelo bem que tinha feito. Feito compreender aquele ingênuo, doce e cândido, disposto por outros. Feito descobrir seu lado intocado, o lado de si mesmo, dos próprios desejos, do próprio ordenar. Chorou por trazer ao rapaz aquele grande benefício. Ou malefício.
Pouco tempo depois, ela vai ouvi-lo dizer:
– Você pode me ajudar? -perguntou o jovem.
– Claro. Em que posso ser útil? -respondeu alguém.

Os miseráveis

Como doía aquela miséria. Como pesava no seu coração a leveza dos seus bolsos. Aquela realidade acachapante, que limitava seu jeito de ser. Aquele desemprego inoportuno, no auge da sua mocidade. Eram tempos de crise, um contexto sem precedentes na história da classe trabalhadora. Como de costume, uma minoria absoluta se gabava dos seus privilégios enquanto uma imensidão de operários sofria a derrocada da economia. No meio termo encontrava-se um quase adulto, um mais que rapaz solitário no seu quarto-e-sala, vivendo na dificuldade que a vida lhe jogara. Não que amaldiçoasse o seu teto e os seus pertences, mas o dinheiro lhe faltava para ser quem gostaria.
Vivia de biscates ali por perto e sonhava com grandes somas para se livrar daquele incômodo. Seus rendimentos mal somavam as despesas e não conseguia investir em si mesmo como pretendia. Queria era escrever, publicar o seu livro, para que todos pudessem compartilhar com ele das suas idéias, das poesias que afloravam na sua solidão.
Pelas palavras doces conquistara a simpatia das moças da redondeza, com as quais mantinha um fino relacionamento. Não era nem rico nem pobre, apenas um sobrevivente. No dia-a-dia tentava novos negócios mas a falta de refinada instrução lhe atravancava o progresso. Então se via preso num ciclo sem surpresas, sofrendo do desânimo humano. Procurava as donzelas com as quais se consolava e, diante dos seus acolhimentos, metia-se com seus poemas a reconhecer-lhes a bondade.
Tinha impulsos de dar-lhes mais do que palavras, mas moedas não tinha que lhes dessem passeios ou objetos de valor. Padecia com a gentileza das moçoilas, hospitaleiras e presenteadoras. Sua companhia lhe rendia jantares, perfumes, peças de roupas e privilégios diversos. E ele, em vez de se regalar com as dádivas, abatia-se por modesta retribuição. Como doía não lhes darem colares de pérolas, vestidos de seda e sapatos finos! Pobre dele! E podia ser, mesmo. Mas não admitia ser aproveitador. Como doía aquela miséria, aquela realidade tão dura com ele.
Em dado momento decide se aventurar pelo comércio, oferecer-se por mais estudo ou por mais trabalho, mas não encontra nada compensatório. Trabalhar por instrução não podia a troco de ser expulso do apartamento. Estudar gratuitamente não era possível por que não entrava nas faculdades. Daí foi sucumbindo ao desalento e adoeceu. Vieram as moças ao seu socorro, deram-lhe medicamentos e esperança. Injetaram-lhe ânimo e lhe fizeram companhia, todo este tempo. Foi uma época penosa, viveu às custas de favores e conheceu bem o valor da solidariedade.
Na saúde voltou a trabalhar com todo empenho e conseguiu uma pequena bonificação. Tratou de destiná-la à recompensa, levando flores às benemerentes que lhe acudiram na doença. Conseguiu outra promoção: a de conceito. Passou a ser visto como alguém de valor.
Mesmo assim, sentia o pesar da vida parca. Recebia um telefonema mas não podia exagerar na ligação de volta sob a ameaça de cobertor curto: alongasse que fosse a sua conversa, faltaria dinheiro para pagar outras dívidas. E era uma ameaça constante, aquela. Não podia se demorar ao telefone, não recebia ligações a cobrar e interurbano então, nem pensar. Nas suas visitas levava um presente baratinho mas de coração. Com os amigos bebia da barata e não deixava que lhe pagasse a parte com medo da má fama. Nas reuniões mais abastadas ele se recluía no próprio isolamento.
O tempo foi passando e ele estudando os livros que tinha lá. Foi tomando gosto pela coisa, seus companheiros de todas as horas. Foi compreendendo um pouco da vida e a essência que é a do homem. Recebia as amigas na sua casa e, se antes sentia vergonha, aprendeu a dizer que aquele era ele, aquele sofá meio simples, o ambiente meio antigo e desbotado, eram ele, assim meio modesto. Aquela franqueza era demais para elas e ele passou a ser venerado. Tantos ricos diziam o que não tinham e ele dizia que não tinha o que elas viam: riqueza. Mas era uma riqueza diferente, era a do espírito. Sempre fora cavalheiro, gentil, batalhador. Elas só não entendiam como ele não era descoberto, um homem daqueles, valoroso, humano.
Mas tal qual o seu renome, seus estudos perpetuaram. Suas loas à vida repercutiram na cidade e os figurões quiseram saber dos autores daqueles veneráveis pragmatismos que chegavam aos seus ouvidos. Eram palavras de otimismo que impregnavam nas jovens, nas moças e suas irmãs, que serviam de incentivo para os seus problemas e seus temores. E elas se mostravam aguilhoadas na vida pelo exemplo que tinha um endereço certo: aquele quarto-e-sala num bairro afastado da cidade, no entorno dos mais afortunados.
De lá é que vinha o otimismo, o modelo de esperança e sobretudo, de lá é que vinham as poesias. Um construir tão singelo entre frases, rimas e sentimentos que se tornava um presente de leitura. Eram palavras maduras, calcadas nas noites de reclusão e nas horas de solitária companhia dos literatos. E quanto eles o ensinaram!
À sua presença, os figurões trataram de seus textos. Deram-lhe votos de confiança e uma oportunidade de ouro para mostrar seu talento. Trouxeram as câmeras de televisão e os repórteres empunhados, ao vivo da cidade. O poeta então entonou o seu escasso e provou para tudo e todos o valor da sua conduta. A emissora ali presente levou sua história das lentes para o país e o homem ficou conhecido por todos os cantos. Viajou cidade afora entoando as suas rimas e transmitindo os seus princípios. Serviu de exemplo para vaidosos e pedantes, miseráveis e bem providos. Fascinou milhares de almas pelo país que se prestaram a escrever como ele, poemas da vida, da luta e da volta por cima.
Ganhou notoriedade e viu baterem às suas portas oportunidades atrás das outras. Aceitou uma delas e se mudou para a capital, uma casa grande com churrasqueira e piscina, chafariz, escritório, biblioteca e garagem para um carro novo.
Assim instalado, a sua primeira poesia foi levar colares de pérola, vestidos de seda e sapatos finos para as suas donzelas na cidade pequena.

O sabor da vida

"Não é o muito saber que sacia a alma, mas sentir e saborear as coisas internamente." (Santo Inácio de Loyola)

Ansiedade

"A ansiedade nunca nos fortalece para o dia de amanhã, apenas nos enfraquece para o dia de hoje." (John Blanchard)

A tatuagem

Nesta terça-feira de carnaval soube da história de duas amigas que se conheceram na piscina de um clube de campo do interior de São Paulo. As duas tomavam sol próximas e a tatuagem de uma chamou a atenção da outra, motivo pelo qual começaram a conversar. Como ambas são muito simpáticas e tem algumas coisas em comum, o papo se renovou em outras oportunidades e hoje se entendem e se ajudam como se se conhecessem há anos. Eu mesmo pude comprovar.
A tatuagem aqui se tornou símbolo de integração, a beleza da amizade brotada do simples, da tarde de verão, sem medo do ridículo ou da indiferença, do gesto vazio por falta de eco, da rejeição pura e singela.
A tatuagem aqui representa o nosso desejo de expansão e o receio da aventura com surpresas. Mostra nossa vontade de fazer amigos com a facilidade de abordar pessoas e a preocupação em escolher assassinos para entrarem nas nossas casas.
A tatuagem mostra o medo vencido, a bola para dentro da linha do gol, o avião pousado, as luzes intermitentes, as asas batendo, os ponteiros girando e o mar calmo e aberto, à revelia do silêncio sisudo, da carranca empertigada, do olhar de poucos amigos, das blindagens invisíveis, do magnetismo que afasta pessoas, do cercado cinza e restrito, da panela onde habitam sempre os mesmos.
A tatuagem aqui é a que deu certo, que me tem por testemunha, sinônimo de mão dupla, sinônimo de novos amigos, o novo elo da corrente, como a vida, que nunca se quebra.

Viagem de ônibus

O rapaz entra esbaforido e vai logo perguntando:
-Seu motorista, esse ônibus passa em Birigui?
-Passa, sim senhor!
-Ah, muito obrigado.
O rapaz vai para o lugar dele e se senta confortavelmente, mas assim que o ônibus entra na rodovia, levanta-se e vai até o motorista para lhe perguntar:
-Seu motorista, esse ônibus passa mesmo em Birigui?
-Passa, sim senhor! Passa, sim senhor!!
-Ah, muito obrigado.
Mas, não contente, depois de vinte minutos de viagem, o mesmo rapaz se levanta mais uma vez e mais uma vez vai até o motorista para lhe perguntar:
-Seu motorista, o senhor tem certeza que esse ônibus passa em Birigui?
-Vai pra pqp!!
-Mas passa em Birigui antes, né?

A passagem

As portas se abrem e pés com correntes tilintam pecado e sofreguidão passo após passo inferno adentro, silêncio e calor fumegante. As mãos presas e o cenário em vermelho, crepitando inglória e crueza, lava e fumaça soltando de buracos do chão. Os grilhões esquentam nas pernas e punhos do morto, mas dor não sente no corpo desde que a alma ficara no térreo por crime de assassinato. Expressão rude e andar retesado, cospe a saliva que em pouco se esvai na quentura como um pingo de areia soprado num mar de tormenta. De imediato lhe vem resistência, um tranco por trás em sinal de inflexão e a forquilha na nuca para andar como escravo até ser jogado numa vala dantesca, coberto de lama até o pescoço, soltando ódio das ventas.
Dali o elevador se fecha e, subindo, do térreo recolhe uma doce donzela, corpo lívido e ar puro, frágil como uma hóstia. Os cabelos crespos e morenos, brilhantes pelo halo ali em cima, arrumados para trás em presilha não fossem alguns fios escorridos pelo rosto meigo e pela boca entreaberta, que a moça então, delicada, ajeita para trás. Sobe graciosa, meio quieta, meio pensando, o marido e os filhos deixados para trás, arrancados por estilhaços de crime, encaminhada aos cuidados de anjos do céu vinha desguarnecida de raiva ou rancor, abonada por um quê de divino subia antes da hora, abrindo ao redor as suas asas, belas e suntuosas, livre para voar.

O doido

Em um cruzeiro de luxo o passageiro avista um homem barbudo pulando e acenando de uma ilha e diz ao comandante:
-Olha lá aquele homem fazendo sinais!
-Ah, deixa pra lá. Todo ano, quando a gente passa por aqui, esse doido fica desse jeito...

Por quem os sinos dobram

Os sinos dobram por ele. Publicitário bem sucedido, feliz com a família e ela com ele. Bem relacionado com os colegas, funcionários e amigos e eles com ele. Um cotidiano atribulado: viagens, hotéis, exterior, novos clientes; uma vida intensa e ela com ele.
Reflexão como esta é combustível para ele. Pobre e desgraçado, viu seus cofres encherem por puro talento. Ele, que contava moedas para o sorvete e rastejava sob a roleta do ônibus agora viajava em aviões e carros luxuosos. Uma vitória merecida num contexto difícil.
De lá, do alto da sacada, com a cidade a seus pés e a brisa no rosto, num instante de sossego, sozinho e distante, ele pensou: os sinos dobram para mim.
A rotina era estressante. Reuniões, contratempos, chegadas, partidas. Tensão, responsabilidade, noites mal dormidas, horários, agendas, supervisões, nervoso. Nervoso. Nervoso. Um dia ele tombou. Acordou grogue com gente às suas voltas e o peito plugado. Uma dúzia de flores no vaso, 3 médicos presentes, 2 aparelhos de medição e uma realidade: ou diminuía o ritmo ou viajaria pela última vez.
Precavido, ele obedeceu. Deu ao primogênito a sua maior aspiração: o poder de conduzir os seus negócios. Primeiro sob às suas sombras, daria posse paulatina dos seus segredos e filosofias. E se manteve mais perto do pupilo do que da empresa. Apenas em questões importantes ou que requeressem a sua experiência ainda preponderava. Instruía o filho, um sensato estudante, a administrar sua agência.
Que dia feliz, pensou o filho. Herdar os negócios do pai, de vento na popa e ter como mestre o mestre da propaganda! Ele, o desprezado. Que talvez sobrasse num canto, como sempre; apenas um interessado, um atendimento aqui, uma criação acolá, uma conselhozinho quem sabe. E o pai lhe surpreendeu! Deu-lhe a chance da sua vida e se revelou tão paternal como nunca sonhara.
Os sinos dobraram por ele, disse em voz alta se lembrando do passado, com os filhos pequenos e a esposa reclamando-lhe a ausência. Era um simpósio sobre a responsabilidade social na propaganda e conversava com alguns publicitários numa roda animada. A certa altura, um deles mostrou comedimento na profissão; o nascimento da primeira filha e a afeição pela família o distanciavam um pouco dos negócios e ele preferia mantê-los estacionados, guardadas as devidas considerações, para que lhe sobrasse mais tempo com ela. Seu primeiro pensamento foi rotular aquele pai de família de medíocre, com tantas variáveis e gestões de negócio disponíveis. Tantos anos depois, lembrando-se propositadamente daquele dia, reconheceu que a intenção do homem da roda era mais nobre do que imaginara: ser um pai de família companheiro não tinha dinheiro que pagasse. E repetiu para si mesmo, com a voz embargada: os sinos dobraram por ele.
O filho progrediu notavelmente. Com o seu apoio, ele deslanchou tanto mais quanto pudesse prever. A amizade entre os dois trouxe frutos tão virtuosos que se arrependia das chances que lhe protelava, reduzindo-o à função de aprendiz.
Sobretudo, aproximou-se da filha, conhecendo suas questões. Ciente das suas dificuldades, propiciou-lhe contatos fabulosos para a carreira de arquiteta. Ela, que resistia em recorrer à influência do pai, recebeu a ligação de um de seus clientes, um poderoso executivo do ramo das construções e viu seu escritório decolar como se tivesse as asas de um anjo.
Ela, que andava meio dividida. Não lamentava a vida que tinha nem tampouco o pai famoso e provedor, mas se ressentia do seu calor e da sua presença, decisiva em muitos casos. Preferia se manter solitária, batalhando e sofrendo quietinha os bons negócios que não fazia pelo empurrão que o pai não dava. Naquele dia, naquele contrato milionário com o construtor associado e a platéia aplaudindo a nova arquiteta, ela olhou o pai de longe, sorrindo-lhe com palmas de orgulho e se emocionou.
– O senhor precisará fazer exercícios constantes. Uma caminhada a passos rápidos por 1 hora, todos os dias. Se puder pratique um esporte relaxante; talvez natação.
As palavras do médico foram respeitadas. E ele se lembrou de tantos colegas e conhecidos da profissão que eram também excelentes nadadores, jogavam futebol todos os fins de semana. Os sinos dobram por eles, lembrou. São ótimos profissionais e ainda têm tempo para cuidar da saúde.
Para a sua ele não dava importância, enfiado com suas planilhas, preocupações e extratos. A esposa e os filhos tomavam sol com os parentes e amigos e curtiam o verão. E o publicitário apagando incêndios, entranhado em reuniões, rodando o país. Era quem pagava as contas da família, quem sempre fora o provedor, quem estava à frente da renda.
Ele então revigorou-se. Obedecendo os conselhos médicos, bem cedinho mergulhava na piscina da casa e nadava o quanto podia, nadava e flutuava, pensando na vida. Numa dessas avaliou a sua realidade: não era assim tão nova para ele. O mesmo negócio, as mesmas pessoas e a mesma rotina apenas sob perspectivas diferentes. Seu júbilo na água se deu quando se sentiu uma pessoa mais participativa. Pela primeira vez colhia os frutos de relacionamentos verdadeiros. Seus amigos, que não o abandonaram nos momentos difíceis, fizeram-no perceber que legitimamente o consideravam. Entendeu definitivamente como procedia a amizade sincera. E desejou que os sinos dobrassem por eles.
– A sua toalha, querido! -disse a esposa, na beira da piscina. E o publicitário, sensibilizado que estava, olhou-a com ternura. Não vamos nos atrasar, continuou, a missa começa às 10 horas. Como era apaixonado por aquela mulher, a esposa mais companheira da face da Terra, que vivia às suas voltas, procurando-o com os olhos e com o coração. Ela quem sempre o apoiara, quem sempre lhe dera forças e sempre se mantivera fiel; com que orgulho se olhavam!
Ela quem o trouxera de volta à religião, a quem sempre fora fervoroso mas que os negócios distanciaram. Agora ela o levava de volta, na manhã daquele domingo sereno e caloroso. Ao final da celebração, a família reunida e aos badalos da igreja, ela vai dizer-lhe baixinho no ouvido:
– Querido, os sinos dobram por você.

Diálogo

"Milhões de pessoas estão sofrendo. Elas querem ser amadas, mas não sabem amar. E o amor não pode existir como monólogo: o amor é um diálogo, um diálogo muito harmonioso." (Osho)

Estante Virtual


Vai aqui minha primeira indicação de site. Trata-se de uma invenção verdadeiramente necessária para os amantes da literatura. Criado há 4 anos, o site vem cadastrando sebos virtuais de todo Brasil, que por sua vez comercializam de 100 a 60.000 livros, conforme o plano de serviço que o site dispõe. Se antigamente a tarefa de procurar um título pelas ruas da cidade era cansativa e dispendiosa, hoje, com a proliferação dos sebos na internet e com o estouro das vendas online, ficou mais fácil e mais prático comprar livros. Ainda assim, pesquisar certos títulos na rede não era, de fato, incumbência para qualquer um. A chegada da Estante Virtual - www.estantevirtual.com.br - facilitou demais a vida dos compradores de livros. O site já ultrapassou 23 milhões de livros cadastrados por 1.600 sebos e livreiros de 300 cidades de todos os estados brasileiros, 10 milhões de buscas são feitas por mês e 100 mil pessoas visitam o site todo dia. Do total de livros, pouco mais de 656 mil custam até 5 reais. É livro para todo mundo. E ainda se encontram livros recentes, antigos, raros, em dezenas de idiomas, cursos, enciclopédias, atlas, dicionários, gibis. O bom estado de conservação é requisito necessário para comercialização e alguns sebos disponibilizam fotos e informações sobre o estado geral de seus livros. Para os amantes da leitura, uma gigantesca estante virtual.

Viagem do centro da Terra

Anda em círculos procurando saídas e um vento brisa breve apontando a direção conhecida, ao norte, de onde caíra. Volta à partitura inacabada e estão lá três novas notas que acabara de inspirar. Senta-se ao piano insatisfeito, angústia vibrando às mãos silentes e pedaços de caminhos intermitentes ecoam sobre a parede branca conforme seus punhos nada fazem. Rege algumas três tentativas e o que tem são desvãos esconsos onde moram suas buscas. Quer os entremeios, lampejos para casa que vêm e vão como pontes levadiças, brotam em claves mas piscam nas pausas e pensa que pode voltar se tocar sem parar.
Dorme e sonha um enigma onde lá é um sol e à ré, mi é um fá sustenido e acorda e se atropela ao piano sem notações. Advém-lhe dós e sis frescos à bemóis semibreves, aplica rés à quatro oitavas, susteniza um compasso frenético para viajar na loucura e do interlúdio à fuga nada acontece. Passa o dia num quase, revoado na brisa de novo, atento à trilha que ele mesmo compusera, aberta para dentro da Terra a golpes de imaginação.
Se na brisa voltasse, assobiando o moderato como era em temperança, poria para fora o próprio composto, um andante entremundos, descendendo dor e verdade, paz e prudência pelas bandas que versava em condões e colcheias. Na brisa assopra um destino, uma inspiração de rés temperadas que aterrissam brandas tão logo subiram seus tons. Sem ímpeto, sem força, a doçura baixara seus punhos de guerra e num arremesso de basta solta seus ventos, bradando à caverna o canto animal que injeta nos olhos; enfuriado peito para dentro, peito para fora salta suas veias num turbilhão de poemas em notas, vendaval de cifras e arranjos que levantam as folhas, estremecem as almas e acordam a platéia. E cintilam o caminho do centro da Terra.

Plantação

Um homem de negócios, viajando por uma grande fazenda, encosta o carrão no acostamento e pergunta para o caipira:
-Boa tarde, moço, você sabe me dizer se nessa terra dá arroz?
-Num dá não sinhô.
-E feijão, dá?
-De jeito ninhum!
-Dá frutas e verduras?
-Também num dá não sinhô.
-Soja, café, amendoim...?
-Dá não, dotô...
-Quer dizer que não adianta plantar, que não dá nada, mesmo?
-Bom, prantando dá...

Essas crianças...


"Essas crianças de hoje!" foi escrito pelo médico e dramaturgo Pedro Bloch em 1970. Se o tivesse feito 10 anos antes ou daqui há 10 anos, o resultado teria sido o mesmo: uma compilação da eterna pureza, espontaneidade e ingenuidade infantis, captada de histórias vividas e ouvidas das crianças. O autor de "Criança diz cada uma!" narra prodígios, frases, respostas divertidas, reações surpreendentes que encantam qualquer um. Encantou a mim particularmente, quando encontrei o livro jogado no Sebo do Messias, cheio de pérolas das mais maravilhosas e inesperadas. A leitura de "Essas crianças!" evoca o mais sublime dentro de nós mesmos, a época em que éramos livres de preocupações e tudo era tão simples como 'fechar a torneira do céu num dia de chuva'. Logo abaixo vão alguns trechos das frases encontradas no livro que, em razão de ter sido publicado há mais de 40 anos, deverá ser encontrado apenas em sebos - lojas físicas ou virtuais (há várias opções no site da Estante Virtual - www.estantevirtual.com.br). Um livro leve, gostoso, que nos arremessa tempo adentro: primeiro por que voltamos a ser crianças; depois, por que não vemos as horas passarem.
Definição
-Papai, hoje eu vi o metrô!
- Que nada, menino! Metrô onde? Você nem sabe o que isso é!
- Não sei, é? ... Metrô é um trem... que entrou pelo cano.
O terreno
-Franklin era deste tamanhinho assim, quando, diante de uma casa em demolição, apontou:
- Olha, pai. Estão fazendo um terreno!
Relâmpago
Diante do contínuo relampejar, Serginho observou:
- O céu está querendo acender mas não pode.
Essas crianças de hoje!
Beatriz, de três anos, acordou surpreendida por ter caído da cama e exclamou, de olhinhos arregalados:
- Vovô, a cama derramou eu!
Nestorzinho e o caminhão
Nestorzinho, vendo passar um daqueles caminhões que jogam água para lavar as ruas:
-Papai, olha a chuva passeando de caminhão!

Amor impossível


Voltou-se para casa acelerado, pisando ódio e calçada até lhufas, cuspindo abelha e zangão, estufado de vermes do amor, inchado de raiva e desprezo reviu-se o futuro, gozado até lá e distante até cá nos seus sonhos, a paz lacerada por lampejos de beijos de línguas nas cordas vocais, cujas mãos se saudavam em repulsa. Se tapeasse seu rosto às esconsas fugiria dali o amor impossível, os olhos falantes brilhando à cinta-liga, a boca vermelha mexendo para os outros bom dia e pois não e para ele mordendo um silêncio lascivo que os outros diriam em vão.
Mas sofre e prefere fugir-se a amanhã em refúgio às sombras; e à solidão se avança, ele e consigo, como se dois bastassem para garantir-lhe a burrice. Avança dia após dia em retrocesso, escalando a desgraça para baixo do poço, seguindo seu corpo pujante que gritava para ele o que os outros não viam.
E corre. Corre atrás dela nos sonhos e nos sonhos vai preso por achaques de repressão e moralismo, destinado à masmorra a golpes de rabugice lhe açoitam cruéis a libertínia, sangrando volúpia tantos graus seguisse acima. Cai sem sentidos aqui e acolá lhe sobem a serra e lhe mostram a corda, pendurada num alto de galho lhe sorrindo ao pescoço em prenúncio de heresia. Ouve as sirenes e sufoca num anseio incontido, vermelho e espumante lhe batem no peito e lhe desfibrilam os prazeres da carne, trazendo ao passado um resto de azedo e misto de dor e ponta que lhe passa a cutucar no começo e se deflora ao enfiar-se a mão no peito, trazendo um maço de rosas vermelhas que ela plantara em sinal de desejo.