Sobre Kafka



Por FERNANDA MENA da Folha de S.Paulo, com ilustração do artista Fábio Copiaco inspirado em diário de Franz Kafka

Mesmo sem deixar testamento, Franz Kafka (1883-1924) escreveu ao melhor amigo Max Brod um último desejo: que ele queimasse todos os seus manuscritos, sem os ler. A fogueira deveria transformar em pó diários, cartas, textos e esboços que estivessem guardados com Kafka ou com terceiros. Brod resolveu não seguir as instruções do amigo, e dessa desobediência surgiram dois cânones da literatura: "O Processo" e "O Castelo". Das páginas de seus diários, cartas e anotações coletadas por Brod entre Praga e Berlim, no entanto, emergiram fragmentos de uma existência atormentada, marcada pela inadequação, por neuroses e pela doença.
São esses diários e cartas que o romancista Louis Begley destrincha para compor o ensaio biográfico "O Mundo Prodigioso que Tenho na Cabeça: Franz Kafka", recém-lançado pela Companhia das Letras. Paradoxalmente, em entrevista à Folha, Begley revela: "Se eu fosse Brod, teria queimado [os escritos pessoais] porque, no fim das contas, eles ficam entre a literatura de Kafka e seu leitor. Obstruem o caminho, divergindo a atenção da obra para o homem".
E prossegue: "Kafka era muito escrupuloso. Queria destruir sua obra inacabada porque sabia que os escritos já publicados garantiriam sua reputação no panteão literário". Para Begley, se por um lado Brod trouxe aos olhos do mundo escritos importantes de Kafka, por outro "seus leitores e estudiosos estariam muito bem hoje em dia se textos fracos, como 'Descrição de uma Luta' e 'Preparativos para um Casamento no Campo', tivessem sido queimados".
Vasculhar os arquivos da intimidade de Kafka, os mesmos que Begley diz que queimaria, foi para ele irresistível.
O escritor polonês que cresceu nos EUA, autor dos romances "Sobre Schmidt" e "Naufrágio", é, assim como Kafka, judeu e doutor em direito.
A atração pelo universo kafkiano, no entanto, se deu pelo deslumbramento com os enigmas impressos em sua obra. "Quando li 'O Processo', aos 15 anos, senti uma afinidade extraordinária com sua escrita. Kafka parecia estar falando diretamente para mim. Mais: ele parecia falar só para mim."
Em seu ensaio biográfico, Begley costura trechos de cartas e dos diários, enfatizando o contexto de antissemitismo que emergia na Praga onde Kafka nasceu e viveu quase toda vida.

Duplamente detestado
Tcheco que falava e escrevia em alemão, mas era judeu, Kafka era alvo dos sentimentos antissemitas e antigermânicos. "Ele era membro de uma minoria dentro de uma minoria, ou seja, ele era duplamente detestado", explica Begley. "Crescer nessa atmosfera reforçou sua percepção de ser um intruso. Digo 'reforçou' porque Kafka era tão complicado que fatalmente se sentiria alienado mesmo sem ódio ao redor."
Intruso naquela sociedade, intruso em sua própria casa, onde ocupava um cômodo entre a sala e o quarto dos pais. Obcecado por silêncio, que julgava essencial a sua produção ficcional, ele era torturado pelo entra-e-sai na casa e pelo medo do pai que por ali circulava. A hipocondria, a insônia, a vergonha do corpo, o horror à intimidade e a repulsa por carne --depois obrigado a comer para combater a tuberculose-- formavam um catálogo de suplícios a que se submeteu. "A vida é meramente terrível, sinto isso como poucos", escreveu Kafka a Felice Bauer, a alemã que cortejou por cinco anos, com quem trocou 700 páginas de correspondências turbulentas antes de noivarem e, não muito depois, romperem.

Kafkiano
"A claustrofobia do mundo retratado em sua ficção espelha a de sua própria existência", avalia Begley, para quem existe apenas um "significado" na obra de Kafka, apesar de todas as teses, hipóteses e análises feitas sobre ela: é a reação que seus livros provocam no leitor. Um "significado" concreto o suficiente a ponto de criar um adjetivo quase mítico, difundido em várias línguas: kafkiano.
Para Kafka, "um livro tem que ser um machado para o mar congelado dentro de nós". Sua vaidade e absolutismo não poderiam permitir, portanto, que suas construções ficcionais ficassem aquém desse ideal. Daí a rejeição do que representa hoje um sexto de sua obra. Aquilo mesmo que ele queria ver transformado em cinzas.

O MUNDO PRODIGIOSO QUE TENHO NA CABEÇA: FRANZ KAFKA
Autor: Louis Begley
Tradução: Laura Teixeira Motta
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 37 (256 págs.)

Bright star


Para quem gosta dos belíssimos filmes ingleses de época, a exemplo de "Emma", "Razão e sensibilidade", "Abadia de Northanger", "Persuasão" e "Mansfield Park" - todos romanceados por Jane Austen -, "Bright star" é uma ótima recomendação. Conta um trecho da vida do poeta londrino John Keats (1795-1821), considerado um dos grandes nomes do romantismo inglês, talvez o último. Keats sensibiliza não só pelos seus poemas, mas pelo seu carinho com tudo o que lhe era caro. "Eu tenho consciência", disse a certa altura. Um filme para quem gosta de cinebiografias como eu, para quem gosta de literatura (Keats ensina poesia à querida Ms. Brawne), da Inglaterra do Século XIX, dos passeios sobre o campo, das paisagens, do diálogo sobre a grama, dos trajes, dos vestidos (Fanny Brawne, de quem Keats gostava, era estudante de moda) e, sobretudo, de poesia.

Paulo Coelho defende autopirataria


Por FERNANDA MENA, da Folha de S.Paulo

A falta de papel para reedição de livros na Rússia levou o escritor Paulo Coelho à autopirataria.

Pirataria de livros no Peru se espalha pela América Latina

Sem o livro impresso e munido da tradução para o russo, Coelho decidiu disponibilizá-la em seu site.
Coincidência ou não, as versões do livro em papel, quando reeditadas naquela língua, bateram 1 milhão de exemplares vendidos.

"Recebia muitos e-mails que faziam referência à edição pirata do site." Entusiasmado, o escritor resolveu repetir a estratégia com outros livros em outras línguas colacionando links das obras dos sites troca de arquivos. "Criei o meu "Pirate Coelho!"

Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida por e-mail à Folha

FOLHA - "O Vencedor Está Só" estava nos camelôs do Peru antes de concluída a tradução oficial. Como isso ocorreu?

PAULO COELHO - A tradução da [editora] Planeta foi preparada com certa lentidão, e o editor pirata resolveu encomendar uma tradução ele mesmo.

FOLHA - Como a pirataria interfere no seu trabalho?

COELHO - Meus maiores índices de pirataria são os seguintes: Oriente Médio, América Latina e Índia.

Muita gente diz que, porque eu vendo muitos livros, posso me dar ao luxo de piratear meus próprios livros. O que aconteceu foi exatamente o contrário: vendi essa quantidade porque me dei ao trabalho de fazer isso. Se hoje alguém me propusesse publicar um livro para três leitores, ganhando 3 milhões de dólares, ou publicar um livro para três milhões de leitores, ganhando três dólares, escolheria a segunda opção.
FOLHA - Dá para comparar pirataria de música e de livros?

COELHO - A indústria do livro não pode seguir os passos da indústria musical, que fechou o Napster só para ver a proliferação de sites de troca de arquivo.

Com novos suportes, como o Kindle, o Nook e o Sony Reader, e as aplicações do iPhone, o autor que colocar seus textos em blogs antes e gratuitamente irá escolher os formatos eletrônicos. E aí a editora passa a ser dispensável como são hoje as gravadoras.

Países que repreendem a troca de arquivo, como a França, verão seus escritores perder terreno num mundo cada vez mais competitivo. Repressão não é a resposta, e sim usar o que a tecnologia tem de bom para promover o que a literatura tem de melhor.

Há dez anos, meus livros eram vendidos só no Chile. Hoje estão em todo canto, e as edições piratas dominam o mercado.

Um sermão

Há uma semana subi ao altar. Não como noivo, ainda que a solteirice me acompanhe, mas para apadrinhar o matrimônio de um primo que eu vi crescer. Ainda que me perguntem sobre a decoração, sobre a festa ou sobre os noivos, gosto de contar outra história.
A noite estava agradável, de uma garoa fina para abençoar; a igreja, num sagrado amadeirado, choveu pétalas de rosas, ressoou “Also sprach Zarathustra” por duas trombetas abandeiradas e consagrou num lirismo emocionante a presença da Ave Maria. De lá do alto, fugi das câmeras que filmavam meus olhos brilhando. Vi os figurinos impecáveis, os bancos enfileirados de rostos conhecidos sob um mágico coral que preenchia todo o ambiente com ajuda de violinos. Vi o sorriso dos noivos e a aura de reverência, incrustada na cerimônia como um brilhante no vestido da noiva.
Sob a fartura de comes e bebes, a recepção serviu alegria e confraternidade sobre as dezenas de mesas redondas. Em pé, as perguntas me abordavam tantas coisas, mas meu pensamento seguia a via oposta, levando-me à igreja vazia, sob a penumbra das velas, de volta às palavras do padre:
“Eu ofereço quatro pilares aos quais vocês poderão acrescentar outros: o perdão, o serviço, o diálogo e a fé. Vocês não são noivos perfeitos; nos momentos difíceis, sejam tolerantes, servidores, deem incentivo um ao projeto do outro, façam do diálogo a luz do entendimento. E, sobretudo, mantenham uma fé recíproca e inquebrantável.”
Ao sermão se agregaram a carta de Paulo aos coríntios e a parábola da construção sobre as rochas, que repercutiram demais em mim, particularmente por ser filho de um casamento de intactos 40 anos. Posso garantir que o diálogo derruba obstáculos e constrói caminhos como disse o padre ao noivo engenheiro e que o perdão restitui as feridas, como disse à noiva formada em Farmácia. Posso garantir pela convivência com pessoas que servir e perdoar são verbos insubstituíveis. Ainda que eu seja um simplório contador de histórias, sei que sem amor eu nada serei.

A origem da tragédia

Tudo começou com um olhar. De atração, de impulso, de longe. O coração do rapaz exigia manobras e o da moça fazia os seus lábios sorrirem. Um encontro ocasional, no princípio de uma noite escura e fria, numa taberna irlandesa. As olhadelas de esguelha redundaram em uma aproximação natural e amável, que o destino iria abençoar.
Foi simpatia à primeira conversa e os dois seguiram noite adentro trocando afinidades. Quem os visse juraria que se conheciam há muitas vidas, sorrindo com a desenvoltura de velhos amigos. Entre os minutos de silêncio, os olhares eram tímidos, depois desviados, para não transparecerem uma ponta de interesse. As horas passaram evocando dos dois um sentido reencontro, mas voaram como as folhas lá fora, alçadas pelos ventos gelados. Por causa delas os dois se despediram dos conhecidos e ele acompanhou a moça até a sua casa, um sobrado rústico e vistoso encravado na encosta.
Admirada, a moça sonhou um conto de fadas, tendo a sorte de encontrar um distinto cavalheiro. Por seu turno, o rapaz desejou vê-la de novo, sua beleza, seu recato, seu sorriso. Um sentimento de gostosa descoberta bateu em seus corações, como se descobrissem partes de si mesmos. Tantas semelhanças fizeram que acreditassem na existência de algo mais. De pensarem um no outro com tanta assiduidade, uma certa sintonia os levou aos mesmos lugares, nos mesmos momentos. Por vezes não se viam, no trânsito intenso de pessoas, no caos dos mercados e ocasiões de movimento. Algo lhes dizia que estavam por perto e o reencontro beirava à flor do acaso.
No ímpeto de reencontrá-la circundou seu endereço, perto das montanhas. Andou meio hesitante, entre o ardor de revê-la e o temor da imprevisão. Chegou até lá, onde nada aconteceu e se sentiu tolo. Desde sempre acreditava na espontaneidade; tudo na sua vida de mais gostoso e mais belo acontecera naturalmente. Assim, sob a acusação de heresia, o superego do rapaz censurou-lhe a atitude e ele tomou resignado o caminho de regresso
Bastou pouco tempo que então a encontrasse, voltando para casa de cesta na mão. Trazia punhados de frutas maduras e sobre um ombro descoberto alguns cachos castanhos, meio presos, meio caídos, faziam destacar o seu rosto angelical. Ao vê-lo, deteve-se por um instante, esperando pela sua chegada. O rapaz se aproximou vagaroso, surpreendido pela sua aparição naquele contexto. Foi até ela sorridente e lhe disse com graça e simpatia um alegre cumprimento. Tentou justificar a sua presença por ali mas, com doçura, a moça meneou a cabeça e num psit sinalizou que ele não precisava se explicar. Disse à jovem como é linda à luz do dia. A pele clarinha, o olho expressivo, os lábios rosados. Encantadora. Ela, meio tímida, agradeceu os galanteios. O rapaz se ofereceu para lhe carregar a cesta, ao que ela assentiu. Perguntou-lhe depois como tinha passado aqueles dias. E assim foram caminhando até a entrada da casa, contando risonhos as novidades um do outro. O rapaz disse à moça que pretendia embarcar para a América atrás de uma vida melhor, o que ela no íntimo se condoeu. Por poucos minutos conversaram sobre o assunto, em voga na cidade. Na despedida o moço segredou-lhe o desejo de vê-la novamente e os dois marcaram para a tarde.
Os Senhores da Casualidade se deram por satisfeitos. Encaminharam dois jovens puros e belos, afeitos à família e de raro valor. Tinham esperanças de construir um lar modelo para o município de Queenstown, onde vivia a falta de expectativas. Queriam uma família feliz e batalhadora, que mostrasse para todos o poder da coragem e da disposição.
Naquela tarde os dois se encontraram, conversaram suas vidas, descobriram novos comuns e marcaram novos encontros. Nos novos encontros tornaram-se próximos, freqüentaram seus planos, passearam e ficaram amigos. Amigos, trocaram confidências, gestos de carinho, palavras de estima e, num dia garoento, um beijo apaixonado. Debaixo de chuva, como se o destino abençoasse aquela união, o beijo redundou em cumplicidade, afeição, carinho e amor: uma sensação poderosa, uma disposição inabalável, uma força motriz sem precedentes, que impulsionou o mundo dos dois. Nas dificuldades bebiam da fonte de suas paixões e juntos superavam os seus obstáculos. Das dificuldades nasceu a lealdade e depois o companheirismo. Do seu ventre nasceu um menino, do rebento nasceu a necessidade de uma vida melhor e dela se reacendeu um longínquo questionamento: a possibilidade da emigração.
Mesmo vivendo juntos as intempéries da cidade irlandesa, aqueles jovens, feito então um casal amadurecido e responsável, tinham planos grandiosos para a família. O pai queria proporcionar-lhe um porvir digno e abundante. Naquelas condições e sob os empecilhos daquela realidade, tinha o sonho antigo de construir com seu esforço e sua garra um farto futuro para o lar. A esposa era contra, sustentando-se na presença dos demais familiares, dos amigos e conhecidos, no patriotismo e na força da superação. Contra os seus argumentos reconhecia as poucas expectativas que lhes restavam pela frente. O vislumbre que tinha o marido do outro continente – não confessava – mas lhe trazia uma esperança.
Tantos da sua cidade se preparavam para a partida, embalados na fantasia de um mundo melhor. A agitação na cidade rendeu discussões ao casal, sem que contudo lhes faltasse o respeito. O marido era bom argumentador e as suas intenções eram irretocáveis: todas em favor da unidade, pelo filho e pelo amor da mulher. Quanto a ela, queimava-lhe no peito a distância dos pais. Os dela pensavam no neto: no crepúsculo de suas vidas queriam um menino guerreiro e de renome, que talvez Queenstown não pudesse render. Os dele apoiavam o filho, um lutador de primeira grandeza que um dia voltaria a visitá-los, feliz e bem sucedido. A esposa viu-se sozinha na idéia da permanência e, contrafeita, decidiu embarcar na cruzada do marido.
No ato seguinte, o maior navio construído pelo homem em toda a sua história, tido como insubmergível, chega de Southampton para apanhar os irlandeses com destino a New York. Na terceira classe, a família embarca então para nunca mais voltar.

Sabedoria

"A sabedoria não tem nada a ver com conhecimento. Ela tem algo a ver com inocência. Algo da pureza do coração é necessário, algo da vastidão do ser é necessário para que a sabedoria cresça." (Osho)

A lágrima

Quisera ser como as gotas humanas que nascem de um pequeno soluço incontido. Felizes as que marejam instantâneas, que caem fugazes dos olhos para o nada. Felizes as que saem, breves, volumosas, intempestivas, derramadas ao rosto num último caminho como parte de um todo. Felizes as que caem intocadas e percorrem a alegria ou a tristeza como um símbolo de vitória ou fracasso. Tornam-se célebres, descem perfeitas, brilhantes e cristalinas mas nem sempre carregam verdade.
Felizes as que conseguem sair, em livre trânsito com a alma do mundo, onde a beleza é contagiante. Doces matizes de sonho e realidade, sensibilidade e perfume de rosas tão exato que se possa tocar. Encanto de pétalas que se fundem depois da chuva, gotas miúdas que reinam sobranceiras e hemisféricas sobre o carmim como as lágrimas que se estancam do alto do corpo para o último adeus.
E pulam as ligeiras, num piscar úmido de olhos. Pulam dos corações fartos, que vêem rosa da vida. Pulam da fineza da garoa, da poesia à boca solta, da estrofe espontânea, do verso sem sentido, do poeta que o mundo toca. Pulam da volta por cima, da vergonha na cara, do silêncio, da solidão acompanhada. Pulam das pazes, do encontro, da mágoa ardida, do sonho acabado, da dor da partida. Pulam da glória ou da queda, do trágico; mas sobretudo da pureza. E pulam da escassez ou da abastança, mas pulam apenas dos olhos de quem as deixam brotar.

Invictus


Ainda está em cartaz o novo filme de Clint Eastwood, Invictus. Trata-se de uma bela história de superação, cuja mensagem nos faz refletir. Como não gosto de sinopses, nem de trailers, nem de contar o filme para quem não o viu, vou dizer que vale a pena assistir-lhe. As mocinhas acharão que é por causa de Matt Damon, que interpreta François Pienaar, o capitão da seleção sul-africana de rúgbi; outros, por causa de Morgan Freeman, que vive Nelson Mandela, ou por causa de Eastwood que, às vésperas de completar 80 anos, tem surpreendido atrás das câmeras. Além dos atrativos, o filme mostra uma história real, ocorrida em 1.995, um ano depois de Mandela assumir a presidência da África do Sul, onde os conflitos entre a minoria branca e a maioria negra caminhavam para uma guerra civil. Hoje sabemos que Mandela não conseguiu cumprir todas as promessas do seu mandato, mas teria sido pior se não fosse o episódio contado no filme, que entrelaça esporte e política para unificar um país alquebrado pelo racismo, cujos detalhes não posso falar. Posso dizer, sim, que o poeta inglês William Henley e Mandela deixam uma lição excepcional. Como o filme deixa para mim, na contramão das grandes atrações, do diretor e dos atores consagrados, a sutil constatação de que, mesmo com toda intolerância que insistimos em criar, temos os mesmos desejos, os mesmos medos, as mesmas necessidades. Nós é que segregamos o que quer que nos seja contrário. Criamos falsos conceitos contra as cores da pele, contra as opções sexuais, contra a fé, contra as classes sociais, dentro da nossa família, entre os nossos amigos e até contra nós mesmos. Construímos muros ao redor de tantas coisas, mantemos distâncias sob os mais pífios argumentos, antipatizamos com quem nem conhecemos e afastamos pessoas do nosso convívio por conta de um único tijolo. E vem o destino e nos amarra a pessoas que mantemos à margem, para descobrirmos nelas reflexos de nós mesmos. E vem Invictus e nos lembra que, enfim, somos todos iguais.

Mandamentos do Reiki



"Kyo dake wa ikaru na.

Kyo dake wa shinpai suna.

Kyo dake wa kansha shite.

Kyo dake wa gyô hage me.

Kyo dake wa hitori ni shintetshu ni."


"Só por hoje não te irrites.

Só por hoje não te preocupes.

Só por hoje sê grato.

Só por trabalha arduamente.

Só por hoje sê bondoso com todos os seres."

Desaparecido

Urgente! Procura-se desesperadamente pelo
Lucas Pereira, hoje com 6 anos, que
desapareceu na cidade de Sâo Carlos em
21 de junho de 2009.
Por favor contatar: (16) 33741596.

Invictus

Por William Henley (1849-1903)

Tradução de André Masini

Do fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.

Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.

Sandeman

Um rótulo enigmático
Um nome curioso
Um sabor fora de série

Um conto de Natal

É uma família média. De classe média, por que moram em três: o menino, a sua mãe e o padrasto; o pai mora no céu. A renda da casa não é grande coisa e a vida deles estacionou: com as dívidas, não sobra nada para a diversão. Assim, depois do cansativo dia no trabalho eles se reúnem à frente daquela manual e velha televisão para um momento de lazer.
O padrasto ralha do aparelho e se afasta dele pior do que se achega. Levanta-se furioso do sofá num sobressalto e cospe os marimbondos que brotam daquele peito rabugento. Dispara contra as emissoras, que só fazem transmitir sandices e nulidades pela sua televisão. A mãe, coitada, ainda se cansa com a fúria do amásio. O menino sobra sozinho, posto na penumbra da ausência dos dois, com a luz da tevê a iluminar-lhe os olhinhos, refulgentes com as ofertas de Natal. Decide desligá-la; aquela coisa controversa que o convida a comprar o que não pode. Antes de dormir ele se cobre, reza para o anjinho da guarda e pede ao Papai Noel um pouco de alegria para a sua casa, que considera mais importante que o brinquedo visto há pouco.
É verão e o calor do dia traz chuvas à noite. A mãe também faz seu pedido e o padrasto dorme ruidoso. No resto dos cômodos há outros que têm seus desejos: os objetos, os aparelhos; a alma da casa deseja ordem e paz para o lar.
A televisão está triste pelo que presenciou. Tinha conseguido irritar o padrasto com péssimas notícias e anunciar para o menino um vídeo game impossível. Do alto do armário, desejou também. Mesmo velhinha queria um dia transmitir um bom programa, que enchesse o coração dos seus telespectadores de alegria, fé e esperança. Lembrou-se das suas glórias: a sala lotada à sua frente nos jogos da seleção; gente sorrindo, de abraços e beijos, compartilhando um dia feliz! Quanta novidade contou: da economia, do homem no espaço, dos outros planetas, dos outros países; quantos segredos revelou, aos olhos do mundo!
E agora lá estava, abandonada, sofrendo da carência de atrativos. Há tempos reunia à sua volta gente culta e interessada, procurando pelo seletor um programa edificante, proveitoso e inteligente. Mas, desde que inventaram a audiência os mais instruídos têm preferido boa música e boa leitura. Assim, restou-lhe transmitir shows de bundas, peitos e rostinhos bonitos. Sentia-se até envergonhada com as coisas que mostrava; ela, uma decana televisão. Então, naquela noite relampadejante, rogou ao bom velhinho que um dia transmitisse um programa interessante e construtivo; que não quebrasse sem antes ver a sala cheia outra vez.
Os estrondos da chuva se seguem e de tantos que são, uma eletrizante descarga desce antena abaixo até levar a magia dos céus àquela televisão.
A manhã seguinte é como sempre. O padrasto sai carrancudo e responde descortês à gentileza da mãe. Por sua vez, ela prepara o filho para escola, cujo ônibus não tarda em apanhá-lo. Algumas horas depois vem de volta, de uniforme sujo e lancheira no pescoço, cheio de beijos e histórias.
Os dois almoçam juntos e a mãe parte para o trabalho quando chega a avó. Idosa, recosta-se na poltrona e cochila ao lado do menino, de lápis e caderno, deitado no chão. Ele liga a tevê e se senta à sua frente, meio desatento. E tem uma surpresa. Todos os canais passam a história de um menino pobre, que adora a mãe, tem medo do padrasto e o mesmo nome que o dele. Vê um anjo com asas que desce do céu e tem impressão de conhecer o ator. Ele diz ao menino para ter esperança e acreditar em si mesmo que ainda será um grande homem. Que será dono das suas escolhas, mais ou menos como mudar os canais de uma televisão: ele pode selecionar ao que assiste, os programas da sua preferência, pode mudar se quiser, segundo a sua vontade; pode sintonizar uma estação alegre caso se sinta triste ou optar por um livro caso se sinta perturbado. O anjo abraça o menino e lhe diz para ser feliz. Em seguida a tevê desliga sozinha e só volta mais tarde, com a programação normal.
Enquanto é menino sua mãe vê o amásio deixá-los. Ao contrário do que esperava, sente que ela está aliviada. Chega o dia de Natal e encontra pessoas que há muito não tinha notícias, sem saber que evitavam a sua casa pela presença do padrasto. Observa a alegria da mãe como há anos não via e na noite em que ganha tantos presentes, agradece ao anjinho e ao Papai Noel a entrega do seu pedido.
No ano novo e nos seguintes o menino se transforma num moço cheio de luz. Do alto do seu brilhantismo vai parar numa emissora de televisão como estagiário. Amadurecido vai olhar com a mãe as fotos do pai que nunca conhecera. Formado vai ter idéias geniais e galgar postos sobre postos no começo da carreira.
Um dia dão-lhe a responsabilidade de produzir um programa. Honrado, pede tempo para criar. Refletindo sobre um modelo ideal, sobre as escolhas de cada um, como se a vida fosse uma grande televisão, lembra-se daquela tarde pretérita, às vésperas do Natal. Lembra-se do filme e do anjo. De tão marcante, guardara o seu semblante, o mesmo que vira nas fotos da mãe: o rosto do pai. E se emociona.
Ele entende a mensagem: se a vida é uma questão de múltipla escolha, bastava que proporcionasse ao público um programa valoroso, instrutivo e acrescentador. Assim ele fez. Pôs no horário nobre uma hora de cultura genuína e educadora; uma criação sua para todos os lares do país: uma febre; recordes de audiência, fama e dinheiro.
E, na sala lotada, onde a família está reunida e feliz, prestigiando o filho ilustre, aquela velha televisão manual, orgulhosa da sua história pressente a chegada de outro modelo, de tela plana e controle remoto. Mas só quebra depois de ter sido feliz outra vez.

A luz no fim do túnel

Nasce, broto, chispa de luz. Fadas e anjos te cerquem com rosas e estrelas, perfume e brilho de vida. Vê os seus condões, contempla as suas asas e voa a inocência enquanto a consciência não te tome de assalto. Riam seus olhos claros, faróis do berço onde te cercas de mimo e prisão. Rola, engatinha, caia para os lados onde o chão ainda é fofo e se espante que ainda hão de te alentar. Dorme silente em regalo que num pouco intervalo tu te acordas gritando. Tens medo de nada mas à porta parada tu tens aconchego.
Vai, menino, teu céu te acompanha, teu brilho já quase cintila, teu frescor sobrevive ainda que teimes em crescer. Vai, menino, chuta essa bola, rala os joelhos e não chora, cai e levanta por que há males maiores. Sangra e assopra e arde com os homens. Suspira baixinho e sozinho com os anjos que você ainda vê.
Aprende, criança, que a vida é uma escola. Leva a lancheira, não esqueça o horário, partilha o que é seu mas não queira o dos outros. Dê mas não pegue e não se rebele que é um tanto pior. Queime por dentro e conhece o castigo, que virá mesmo quando culpa não tiveres. Aprende imundície já cedo que o mundo não é belo e guarda um facho da tua verdade bem escondido no teu coração. Despeça-se das fadas e do aroma das flores que só as virá nos seus sonhos e só o sentirás no fundo do poço.
Contrarie, rapaz, que ao jovem tudo é permitido. Vá em frente, experimente, que erros e acertos moram no tentar. Despenques mas se levante, por que lá embaixo tu pareces pequeno e já nem todos virão te embalar. Nem te digo cuidado, por que longe de mim tu és mesmo você. Vai, rapaz, projeto de homem, teu brilho alumia conforme te entregas. Vai que é mesmo difícil, tu bates à porta mas te batem de volta. Vai perder a singeleza, vai por aí, doer para vencer.
Não tripudies, homem, que tu morres também. Não queiras te esquecer, que a tua alma toma nota. Mas tripudiaste, homem, e agora pagas caro o sabor da tua derrota. Desespera-te e padece e te arrepende com os homens de mal. Suspira baixinho e sozinho com os anjos que ainda te acompanham. E abres o facho que bem guardaste bem dentro de ti que ainda verás a tua luz. A luz no fim do túnel.

Um pensamento

Eu sempre digo que o mundo não é dos espertos. O mundo é dos curiosos.

Primeira vez

Hoje, na edição 1.111 do jornal Folha de Valinhos, semanário distribuído aos sábados com mais de 20 anos de vida, estreio como colunista de um veículo de comunicação. Estreio com orgulho e modéstia, se vocês me permitem a antítese: com orgulho por um recente e manifesto desejo, com modéstia pela atribuição que o exercício confere. Se uma simples frase tem a força de remeter às ideias e ao pensamento - e estes à ação -, então tem o poder de modificar as coisas. Que a inspiração não me abandone, já que consciência me acompanha. Ter coisas lindas a dizer é o retrato de uma alma que tem muitas lições para aprender e poucas histórias para contar. E promete compartilhá-las como as reflexões, como as indicações de filmes, livros ou músicas, como algo digno, como algo que vale a pena. E quer contar, se possível, com a participação de vocês. O primeiro texto se chama "Estreia" e a coluna, que se chamará Contramão, pode ser lida no link Artigo ou clicando aqui.

Estreia

As portas da agência de publicidade se abrem. A secretária me informa a chegada de Ana Paula Moretti, da Folha de Valinhos. Apressado, eu a convido para um café enquanto o anúncio dos Supermercados Caetano é gravado em zipdrive, a mídia portátil de 10 anos atrás. Paulinha e eu conversamos pouco neste dia. Nada de propaganda.
As páginas da Folha de Valinhos se abrem para mim. Novo século, novo milênio. A amizade com Paulinha é a mesma, mesmo depois de ter saído da agência e da cidade. Superou tantas idas e vindas, tanta distância, deslindou-se profissionalmente e tem perdurado por tantos anos graças a um misto de consideração e respeito irretocáveis.
A amizade com Paulinha representa o algo mais que cultivamos nas pessoas, a atenção que podemos dispor a quem conhecemos muito pouco ou quase nada. Quantas vezes demoramos a descobrir a essência de alguém com quem trocávamos apenas ‘bom dia’ e ‘até logo’, sem nos darmos conta disso? Eu me lembro de a mãe de uma amiga ter me perguntado por que a filha dela não encontrava um namorado, estudando numa faculdade com outros 15 mil alunos. Talvez, respondi, por que ela esteja sempre com as mesmas pessoas.
Há o medo que nos persegue, os fantasmas, os perigos iminentes, o desconhecido. Questiono-me sobre o receio da aproximação maior, nesta época em que nem sorrimos nem cumprimentamos sem razão; ficamos alheios, mais céticos e profissionais do que pessoais e humanos.
Mas não vim parar aqui pelos doutorados que não fiz, nem pelos ternos que não uso para empolar a minha imagem, como vemos hoje, envergados em especialistas que dizem tantas bobagens, à revelia de gente simples que às vezes dizem tanto. Venho na contramão, escrevendo sem muito diploma na parede mas como tantos milhões de simplórios que se orgulham das lições que tem para contar. Venho como amante da arte, dos livros, da música, do cinema, das coisas belas da vida, da amizade verdadeira, que só traz coisas boas, que me traz aqui, para contar minha primeira história.

Creation

Uma vida interessantíssima deve ter sido a do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), parcialmente retratada em "Creation" (http://www.imdb.com/title/tt0974014/), de 2009. O filme é envolvente, sensível e visualmente maravilhoso. Propõe-se a contar os questionamentos que Darwin (vivido pelo londrino Paul Bettany) teria tido por teorizar nada menos do a origem das espécies, o que redundou, em 1859, na publicação de "On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or The Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life", considerada uma das obras mais proeminentes do pensamento humano. A beleza do filme está justamente na sensibilidade de Darwin, na consciência do que as suas teorias significariam, nos lancinantes debates internos entre a fé e a ciência - que quase causaram a sua morte -, na sua paixão pela natureza, no seu amor desmedido pela família, pela esposa Emma (vivida pela norte-americana Jennifer Connelly) e pelos filhos, a quem contava algumas histórias de sua célebre viagem - de 4 anos e 9 meses - a bordo do navio Beagle, tempo em que coletou espécimes de diversas partes do planeta que embasariam a sua teoria. O debate entre a fé e a ciência é um dos pontos centrais do filme, mesmo por que Emma é muito religiosa. Aliás, segundo o filme, a esposa de Darwin é firme, resoluta, leal e tem um papel decisivo tanto na vida dele quanto na publicação da sua obra fundamental. Com tantos questionamentos, Darwin quase desiste de publicá-la. Baseado no livro "Annie's song", do escritor Randal Keynes, tataraneto de Darwin, Creation é a minha primeira indicação de filme, uma cinebiografia, meu subgênero preferido.

Dom Quixote

Na meninice era quieto e observador; na adolescência já dava sinais de discordância e na maturidade se revelou. Um menino mirrado, um jovem justo e uma adultidade patente. Teve o tempo de assimilar na sua latência a peculiaridade do seu caráter: não era um homem normal. Crescera diante de percebidas injustiças sem nada poder fazer contra o mundo dos adultos. Os desonestos se espalharam pela sua juventude e, mesmo rocinante, tinha o entusiasmo de um corcel. Mas foi mesmo na madureza que tomou ares manifestantes como se cursasse até então a escola dos varões assinalados.
Tornou-se a personificação da dignidade, um homem correto, defensor dos bons princípios. Conquistou uma esposa respeitosa na maioridade e na igreja selaram um compromisso até que a morte lhes separou, deixando-lhe inconsolado para perpetuar a maior obra dos dois: o filho menino, abençoado fosse, crescido rapaz com a sua retidão. Mas lhe bastou advir à consciência para perceber que o pai não era como os outros.
Num belo dia, quando voltavam da escola do menino, divisou um senhor de idade cambaleante, sozinho com suas compras, vagaroso pela calçada. O pai fez a conversão para a outra pista, emparelhou o ancião e estacionou o carro, dirigindo-se a ele. Com a sua voz mansa e jovial, sugeriu-lhe uma carona para casa, a fim de facilitar-lhe o encargo de carregar aquelas sacolas todas de supermercado. O senhor, com um jeito meio desconfiado, ainda questionou o porquê da oferta antes de dizer que agradecia mas estava perto de casa. O filho achou tudo aquilo meio estranho, mais por que nunca vira atitude igual na família dos camaradas.
O pai lhe dizia coisas e ensinamentos, mas o menino voltava dos amigos cheio de dúvidas. Na escola, nas reuniões, nos trabalhos em grupo e nos seus passeios, ele via duas realidades muito distintas: a do pai, zeloso com o próximo e a dos amigos: diligentes apenas com eles mesmos. Educado mas impetuoso, o filho vai experimentar das duas. Vai ver o pai se meter em confusão para apartar uma certa briga que dela nem tem parte. Vai ver a atuação do pai aonde não lhe cabe, apenas pela aversão às contendas. Enfim, vai ver o pai ser alvejado por murros e pontapés, um caco de vidro que lhe descola a retina e lhe rende pontos e problemas por um belo tempo. Com isso, o filho vai achar que talvez os amigos é quem tivessem a razão: aplaudir o circo pegando fogo.
Depois disso, já moço, vai consolidar a distinção do pai. Vai vê-lo discutir por centavos, reclamar por justiça nas repartições e filas públicas e outras pequenezas que os outros pais não fazem. O pai é de outro mundo, compra dor de cabeça e estresse por pouca coisa.
Ocorre que ele é um puritano. Faz os indolentes darem seus lugares no metrô para os idosos; na sua falta, ninguém se importa. Na rua ensina uma criança que papel de sorvete é no lixo que se joga e a mãe fica ali olhando como se a incumbência fosse dela. No cinema se insurgia contra os inoportunos que lhe atrapalhavam a diversão.
Tinha questionamentos sobre a educação daquele povo, que passava no sinal vermelho, parava na faixa de pedestres e colocava em risco a integridade dos demais. Gente que atrapalhava o trânsito, que discutia em locais públicos, que batia na esposa e nos filhos. E, quando andava pela pobreza, mulheres e crianças dormindo ao relento cobertos por jornal, entrava em parafuso. Levava comida, agasalho, mandava cartas para deputados e senadores mas a miséria continuava lá.
Em um dia bom acordava vigoroso, saía fundando ongs contra a fome e contra o frio e distribuía sopa quente, trabalhando nas madrugadas. O filho até ajudava, mas já se mantinha a distância. Em um dia ruim acordava entristecido; bancar a correção tudo outra vez como se sobre ele se abatesse a tragédia de Sísifo, rei de Corinto.
Mesmo assim se manteve firme ao seu propósito. Deparou-se com um cão atropelado, esticado e morrediço sob um grupo de curiosos que olhavam para ele sem nenhuma iniciativa. Na mesma hora acionou a ambulância e foi também acompanhar o veterinário, salvando a vida do bichinho. Ficou sem telefone o mês seguinte a troco de custear o episódio, mas aquilo não tinha preço. Para o filho custou caro, sem contato com os amigos. A essa altura, já alheio aos seus achaques, o moço procurava o avô e a tia para amenizarem a dificuldade que tinha. Inteirados das ocorrências, temeram a sanidade do pai, que se agravava desde a morte da esposa.
Quando os dois viajavam, numa estrada comprida e cansativa, onde presenciaram um grave acidente, as coisas pioraram de vez. O carro, rebentado e de rodas para cima, ainda girando pelo frescor da capotagem, jazia deserto caído de lado. O filho, cauteloso, pediu que seguissem adiante, sob a suspeita de assalto. Mas ele ainda brigou com o rapaz um pensamento daqueles. Parou em primeira instância para socorrer os acidentados, com toda volúpia avançou de peito aberto, procurando os feridos e alarmando o resgate. Aflito com o horror daquela cena ele correu contra o tempo. Mas se surpreendeu como o filho previra. Do meio do matagal do acostamento, homens armados e encapuzados avançaram sobre ele com voz de investida. Tomaram-lhes o carro, os pertences e a boa-fé, levando-os depois num curto seqüestro até a rua da amargura.
Morando com o avô e a tia, o filho agora o visitava sempre. Teve ainda tempo de descobrir que o pai enfrentara bandido de arma na mão, ameaçando a carteira de uma senhora na rua, antes de cuidar da sua segurança.
Naquela hora o pai rabiscava, só e escondido, à noite e com a ajuda das luzes das velas, suas fartas memórias. Internado num manicômio sob a alegação de ser Dom Quixote, séculos depois de ter nascido pela primeira vez, tinha ressurgido para deixar uma mensagem de caridade, dedicação e amor. Do alto da sua sanidade, não poderia partir sem escrever seu legado.

O caminho de Guermantes

Guermantes é um motorista zeloso. Adquiriu a consciência de sê-lo por todas as dezenas de anos em que esteve em exercício. No princípio era mesmo mais impulsivo, mas os sustos que o acometeram na rotina do asfalto ensinaram-lhe a prudência e a responsabilidade.
Desde então veio se esmerando na arte de dirigir e ao longo da sua história ele se viu nas desatinadas temeridades que os insensatos cometiam. Percebeu como arriscavam a vida de si mesmos ou atentavam contra o direito das pessoas por estarem nos seus caminhos. Lamentou ter sido parecido, a bordo da sua potência em plena cidade.
Agora, um senhor respeitável, ele se vangloria da volta por cima, ainda na juventude, quando compreendeu os perigos das manobras intempestivas. Abandonara então a imprudência para se tornar um primoroso motorista.
Condutor por excelência, vem chegando ao fim da sua jornada. Está se lembrando das suas andanças. Vai suspirando pelo percurso a satisfação de uma boa vida e se compraz das suas memórias. Está na pista cauteloso, seguindo lentamente, observando o movimento, os automóveis que passavam, a paisagem à sua volta. Vê pelo espelho as marcas do passado e sente orgulho dos frutos que colheu. A consideração o acompanha no roteiro e ela se presta a noticiá-lo sobre a performance dos motoristas que dividem a estrada com ele. Está compenetrado, embutido no seu veículo a meditar com a propriedade de um veterano.
Vagaroso, talvez pelo trânsito intenso, que exige sua atenção redobrada, Guermantes deixa a liberdade soprar-lhe o rosto e lhe desgrenhar os parcos cabelos. É uma pista larga, ainda que irregular: esburacada em alguns pontos, perfeita em outros. Seu veículo é antigo mas ele aprendeu a tratá-lo com o correto cuidado. Bem se lembrava dos tempos lá atrás, quando lhe judiava a estrutura: por ignorância, por falta de carinho ou por imoderação. Isso entristecia e aliviava ao mesmo tempo: causavam dores pelo excesso, mas refrigério pela superação.
O senhor vê passar por ele um piloto bem novo. Passa à desfilada, cortando à sua frente, pela esquerda e pela direita, os veículos lentos em fila. Passa por um instante que é aquele jovem, com olhar malicioso e jeito arrogante. Passa com o pecado do desrespeito, sem se importar com as mulheres, pais e com as crianças que põe em perigo com o desatino das suas manobras. O senhor prevê um futuro difícil para aquele célere dirigente: mais dia, menos dia a vida lhe ensinaria a deferência e a temperança. Do seu íntimo, desejou que o jovem aprendesse como ele: o quanto antes, a fim de que mantivesse intacta a própria integridade. E de quem lhe aparecesse pela frente.
Em certo ponto o tráfego diminui e ele percorre quase sozinho um trecho complicado. É desconhecido para ele e este é um fator preocupante. Não consta no guia e tem medo de se perder. A sua estrela é a sensatez, virtude a qual nunca o abandonou. Decide-se pela intuição quando a estrada encruzilha e se vê em terras conhecidas quando menos espera.
Uma bela jovem tem o carro parado adiante e o senhor, prestimoso, achega-se à acostagem para socorrê-la. Ela lhe diz que o problema é a displicência: a falta de diligência com o seu veículo deixou-a na mão. Sabia dos problemas que ele trazia, mas mesmo assim resolveu empreender viagem. Como fruto, colhia o veneno da própria irresponsabilidade. Ela e o filho aceitam o seu pedido e os três viajam juntos.
Dão-se muito bem. O filho é inteligente, tem bons princípios, interessado, simpático. A moça transmitiu para ele o caráter que era dela. Vão seguir juntos um bom pedaço, até o jovem descer no seu destino. A mãe continua com ele e muitas cidades se passam. Criam laços muito fraternos pois têm muitos pontos em comum. Distinguem em alguns aspectos, mas passam juntos por muitos milhas. Enfim chega também ela ao seu destino e o senhor se mete com a sua vida de novo.
Entristecido, Guermantes é um solitário. A isolação dá-lhe a sensibilidade que os motoristas não têm. Ele sente a aflição dos carros que passam voando por ele como se esperasse pelo pior. São meninos, cujas cartas ainda estão verdes. E o pior: crianças sem habilitação manobram suas sandices sob a égide dos pais. Do alto da sua experiência, o ancião sofre a visão do próprio vaticínio: passa por um desastre lancinante, sanguinolento e pavoroso. Um pai carrega no colo a criança acidentada e na consciência uma culpa irrevogável.
O acidente é tão doloroso para ele que é tão cuidadoso que tem a impressão da virtude ser-lhe uma maldição: passara a vida inteira testemunhando histórias de todas as naturezas: dos culpados, das vítimas, acidentes de todas as grandezas, dimensões e conseqüências. Soube de casos dos mais diversos no seu caminho: gente acostada por falta de vergonha na cara, gente imperiosa e apressada que encontrava o seu destino numa nociva auto-afirmação, gente sonolenta ao volante que fazia na estrada o que não tinha tempo para fazer à noite, gente que fazia à noite o que não devia e caía embriagado no buraco negro da vida. Vê de tudo no percurso para casa e entende o caminho com a clareza de um decano. Observa os mais rápidos e os mais vagarosos, o excesso de velocidade e o excesso de zelo. Às vezes também a lentidão causava transtornos. Como trafegasse pela pista do meio, interpunha-se entre o peso da morosidade e leviandade da rapidez. Assim, aprendeu a ser moderado para tudo na vida, com o ensinamento que a quilometragem lhe rendeu.
E ali, por entre as montanhas da vida, tendo escalado e descido, passado por túneis, buracos, bifurcações, chuvas, deslizes, quebras, consertos, remendos; passado por cima de pontes, viadutos e tantas outras coisas, o velho se sentiu cansado. Suas lições começaram a se repetir e ele se viu um aluno formado. Seu corpo doía o crepúsculo da viagem e a sua mente exigia-lhe o descanso merecido. E então, já meio falho, o motor de Guermantes para de funcionar.

Eu, conto

Vejo uma caneta tinteiro e ela me inspira. Eu me sento à frente de umas folhas de papel, meio brancas, meio dobradas. Lá fora garoa baixinho e ouço uma brisa tão leve que faz os pingos planarem até a vidraça. É tarde e o relógio cansa na parede. Seus ponteiros descem e sobem tão vagarosos que tenho a impressão de vê-lo falhar por um segundo. Olho ao redor. O silêncio e a inércia me fazem pensar que o sono é meu. Na sala deserta um indolente resquício de luz fraqueja lá em cima. A casa alcança o auge da noite e na sua quietude as almas repousam. Os sofás de braços abertos, o tapete esparramado no chão, as paredes em alvo cochilo de pé na penumbra e as camas solteiras deitadas nos quartos. Uma delas dorme sozinha, de lençóis revoltos e cobertores jogados para o lado. Apenas sob aquela tremeluzente nesga amarela trabalham ainda, de cima da estante, os despertos da casa. Eu conto.
Os rabiscos saíam ainda meio tímidos. E eram de fato rabiscos: letras sob um rasurado que insistiam em bloquear o caminho das demais. Num lapso lembrei-me de mestre Romão e da nota que lhe travava a embalada. Não havia um estorvo que causasse aflições, mas uma agonia que lhe tirava o sono. Sei lá, os músicos às vezes têm dessas manias de perfeição, da composição virtuosa. Presto atenção no que escrevem. Parece que entram por um alçapão, de onde voltam mais tarde, dizendo “Heureca!” com cara de assombro. Escritores também são assim: eles se esquecem do mundo e viajam para dentro, metade razão, metade emoção e borrifam suas idéias sob a forma de palavras. E assim, tem gente de todo tipo: autores de todos os tipos e gerações que põem seus segredos no papel. Eu conto.
Houve uma vez em que as paredes ouviram pequenos lamentos. Os sofás embalaram nas fronhas uma mocinha frágil e colhida, sem agasalho, meio hesitante. Contaram que ela, magrinha de alma endurecida pelo peso de um abandono, chorava fininho como o chover que eu conto. Amanheceu de olho inchado e retrato na mão, que ficou no seu bolso ao seu levantar. Então se assustou com a realidade, sem se dar conta que o sobressalto vinha de dentro. Sua hostess acordava com um pum para o trabalho, exagerada que era, batendo a porta do chuveiro. Malcriada, dizia o batente. E ela, estátua do desgosto, desejava mesmo virar pedra de sabão. Mas um sabão diferente, que vira água de um banho só. Seu pensar, lento da manhã insone, congelou-se como ela debaixo do lustre. Pumba! Malcriada mesmo, respondeu a porta para o batente. A moça assustou. A vida é uma brincadeira, pensou. A gente se pauta na vida: na de alguém por amor e na nossa para aprender. E acaba aprendendo de tudo, inclusive a amar, mesmo que seja doído. Que triste controvérsia, escreveria depois, sofrer de paixão. Lá veio a hostess de novo, a passar por ela apressada, engoliu o café e bateu outra porta com um oi curto e seco; parou um instante, meio dentro, meio de saída, viu a coitada despenteada, de pijama e olheiras; disse umas parcas palavras e, pressentindo o pior no mundo afetivo da inquilina, saiu sorrindo amarelo e esfregando as mãos para o elevador. Coitadinha, pensou a parede ouvindo lamúrias.
Ouço barulhos lá fora que podem ser gatos fugindo do frio. Isso me faz lembrar que o planeta ainda gira. A luminária, cansada de trabalhar, está tombada para frente e agora há uma xícara esfumaçando na sua direção, acordada da prateleira. Os rabiscos seguiam sem contar uma história de amor nem falar de paixões arrebatadoras. Era uma coisa meio querente, meio insatisfeita, quase uma hesitação. A tal da aflição tornava insensível aquele coração puro de sentimento mas desgostoso das armadilhas do destino. Amaldiçoava os bancos de praça, os campos de flores silvestres e os piqueniques. O inverno passava amargando a solidão na lareira e as companhias que não eram as pretendidas. Nos fins-de-semana ficava aturando as garotas da sua idade atrás de marido. Um zás faz deitar a caneta e ouço um barulho de amassado.
Agora é minha vez, ouviu a parede assim que a hostess saiu. Vou me esticar na hidromassagem. Eu mereço. Então se foi a moça frágil e insone relaxar na água quentinha. Bastou se achegar no mármore do aparelho para sentir um incisivo conforto. A lembrança de colo e calor disparou na moça recém-solteira uma relevante e penosa angústia e ela pranteou o quanto pôde, faltou no trabalho e dormiu tarde afora. Acordou à noitinha, a cabeça girando, mensagens no celular. Ficou pensando onde estava, que dia que era, se era noite, se era madrugada. Sua tristeza veio embrulhar-lhe o estômago, ruidoso que estava, como uma prioridade. Então, de cabelo molhado, roupão enrolado e caneta na mão se pôs a escrever com ardente paixão. Esta sim era portentosa, cheia de intensidade e arrebatamento. Sua ternura era singular, suas palavras, calorosas. Contava que até então não vira amor igual. Os dias no parque, os piqueniques nos campos silvestres, o amor que faziam defronte a lareira, regado de tinto e promessas eternas. E seguia louvando as lembranças de quatro estações, indeléveis da sua memória. Seguia chorosa, copista da própria consternação. Ia declarando sua afeição na missiva, deixando o perdão para o final, onde o conto de fadas encontrara seu veneno. Causava-lhe espanto se dar conta do que afinal contaminara um romance que um dia fora imortal. Terminou de escrever, dobrou o papel e o beijou. E hesitou. Parou um instante e virou pedra de novo. Pedra de toque, pálida e desenganada, traída sobre os lençóis, por um cortante lembrete: suas tentativas de reconciliação, de tantas que foram, acabaram corroendo pouco a pouco as suas esperanças e esta, a sua última, virou num súbito um amassado no fundo do cesto, onde foi se juntar a bolinhas de rascunhos, embalagens de chocolate e lenços de papel.
Os gatos provavelmente encontraram abrigo. Na escura calada da noite apenas se ouvia o levantar e o sobrepor da tal xícara e os ruídos do tinteiro no papel. Havia corrosão no ar, ser traído e tal pelo amor da sua vida. Que maldição, escreveu ele, gostar de uma moça que gosta de outro. Aqueles passeios, os encontros, as nossas histórias. A paixão declarada, aquele abraço, aquele corpo perfeito, o seu sorriso conquistador, as juras para sempre de um amor sem igual. E de repente, pego de surpresa, logo ele, um partidão, aquela cena amarga que não parava de se repetir. Aquele ex-namorado, a lembrança do flagrante, o que tinha de estar ali? Logo ela, cujos olhos eram dele, cujos corações batiam como um só. Logo ela, apaixonada fanática, aparecer nos seus olhos nos braços de outro. O que foram aquelas noites na lareira? Será que um dia foi verdade? – perguntou por escrito. Que coisa intragável, escreveu e riscou. Ainda tinha a dúvida, saiu por impulso sem surpreender ninguém. Bastava-lhe aquela presença pretérita, um passado morto que ela jurava sepultado. E eis que chega de surpresa, antecipando a volta de uma viagem quis o destino pregar-lhe uma peça. Aquela cena horrenda que não pára de passar e lhe tira o sono: o desespero da moça, o sorriso malandro do ex-namorado, sem beijo nem nada e já sai gritando escadaria abaixo e rua afora, cantando pneu. Recusou-a até então, em suas tentativas de reconciliação. E essa dúvida pesava, a dúvida da traição. E escrevia e riscava, reescrevia e desistia da idéia. Lembrava-se daqueles lábios, das noites com ela e numa injustiça. Pensava e escrevia, rabiscava, jogava fora, passava a limpo e repensava no destino. Heureca! O destino! Decidiu que deixaria em suas mãos o futuro dos dois! Claro! Afinal, para o amor verdadeiro não dá tudo certo? E então, tarde da noite daquele jeito, o tal do rapaz me pegou pelo meio e me dobrou mais duas vezes. Enfiou-me num envelope e deve ter passado uma cola, porque eu ouvi o barulho da tampinha. Então eu fiquei por ali, sobre alguma estante do escritório. Apagou a luminária com um clic e pressenti que enfim se pusera a dormir em paz. Só então com um pouco de escuro pude jazer também.
De manhã ouço vozes do tal do rapaz. Ele parte atabalhoado me chacoalhando a tiracolo e mal entendo o que diz, porque mais boceja do que fala ao celular. Ele pára seu carro e desce me conduzindo, até que sinto o selo e o gelado da balança. Alguma mão desconhecida nos joga numa urna, onde trocamos histórias com centenas de cartas novas, cobranças, boletos e envelopes de todos os tipos e tamanhos. Havia histórias de todos os cantos, declarações de amor, cartas de saudades e me entristeci com algumas que ouvi. Ai que sono, disse ao envelope, passei esta noite em claro. É, eu soube, respondeu-me; eu acordei bem cedinho, dormi na gaveta, quentinho na embalagem. Aproveita para dormir um pouco na viagem, sugeriu-me, eu te aqueço e te faço sombra.
Aí eu apaguei. Só percebi que o grande momento chegara quando vi meu amigo sofrer os rasgos terríveis a que todos os envelopes estão sujeitos. Eu estranhei que a tal da mocinha não fosse nem delicada nem angelical, como os rascunhos do rapaz me diziam. Eu estranhei aquele olhar de atrevimento e notei maquiavelismo naquela moça rechonchuda e de cabelo vermelho. Duvido que ela fosse cheia de riquezas como eu tivera notícias. Para mim era uma atrevida, uma intrusa, invadindo a correspondência alheia. E, como se me descobrisse insultando a sua pessoa, amassou-me em três tempos, com raiva e tudo. Depois me atirou lixo adentro, onde fui me juntar com bolinhas de rascunho, embalagens de chocolate e lenços de papel. Tudo muito escuro, muito quieto e muito triste. Eu conto.
Foi neste cesto que eu conheci a carta da mocinha frágil, meio amassada, meio chorada. Em princípio fiquei meio calado, não conhecia ninguém e me olhavam meio torto, de tão embrulhado mal podia ser lido. Daí percebi quem ela era e, parada caprichosa bem embaixo de mim, começamos a conversar. Ela me contou da aflição da sua autora, uma moça linda de olhar conquistador, de mãos macias que escrevia coisas tão calorosas e depois palpitava entristecida. Falou de umas tentativas de reconciliação que deram em nada. Ela mesma era testemunha de uma pungente desistência: a moça cansara de tentar se explicar. Hei, disse-lhe, eu sou uma carta de reconciliação! O tal do rapaz mandou-me dizer sobre os seus sentimentos! Ainda gosta dela, mas acha que foi traído. Ele não tem certeza, mas chegou num domingo e viu a moça de papo na sala com um ex-namorado que ele odiava. Hei, ouviu-se de lá de fora do lixo, que traição que nada! Eu estava aqui neste domingo, disseram os alto-falantes. É mesmo? Conta, exclamei. Eu também estava, disse a televisão, eu vi o que houve. Primeiro chegou um rapaz, e a moça, meio sem jeito porque é educada, foi logo dizendo oi, como vai. E ele abelhudo foi logo sentando sem ser convidado, relatou o sofá. É, foi isso mesmo que aconteceu, assentiram as cortinas. Depois chegou o rapaz de quem a moça gostava, o namorado dela, continuou o sofá, e a moça se levantou correndo para ir atrás dele e só voltou mais tarde chorando que nem criança. Olha, disse o dvd, eu já contei muitas histórias, mas como essa eu nunca vi. Coitada da menina, lamentou o sofá, passou a noite em prantos em cima de mim. Hei, disse o telefone, o ex-namorado da moça não veio sem ser convidado. A hostess me usou para traze-lo para cá neste dia, continuou; ela ligou da extensão, falando para ele vir com urgência. Que desgraçada, indignou-se a vidraça, eu não pude ver porque as cortinas estavam na minha frente, mas só agora eu entendi por que ela ligou, chamando o ex-namorado da moça!
Foi assim que descobrimos a tramóia da hostess. O telefone acabou nos contando que ouvia as suas conversas e entregou sua inveja da moça, tão terna e tão bela, tão meiga e singela, bem amada e feliz que era ela. Por pura maldade estava rompendo um conto de fadas. Que maquiavélica!
Os dias se passaram e fomos descobrindo novas intrigas. O dvd ficou muito surpreso com toda esta história e contou que ela daria um belo de um filme. A televisão consentiu e, naquela altura, todos nós por ali já lamentávamos pela moça traída. Víamos outras de suas tentativas, sentava-se à mesa mas lhe faltava coragem e lhe faltavam esperanças. Sentava-se magoada e tentava escrever, mas depois desistia. E todos nós numa enorme torcida para ela se dar conta do que lhe sucedia. De dentro do cesto, eu só ouvia um pequeno chorinho. De repente, vi um rosto aparecer por cima da gente lá embaixo no cesto. Era o rosto mais lindo que vira, um olhar tão triste mas brando, uma boca tão linda: era a moça do rapaz! Estava bem ali, diante de nós, à procura do que já tinha escrito, numa nova esperança. Alçou suas mãos por dentro do cesto e tratou de procurar aquela carta que um dia escrevera. Foi revirando os papéis e até fiquei meio tonto das cambalhotas que eu dei. E, estranhando a minha presença, ela então me descobriu. Desamassou-me e eu enfim lhe contei o que me fora incumbido. Foi uma revelação. Houve briga com a hostess e o que se seguiu foi um auê. Mas uma coisa é certa: ela e o rapaz foram felizes para sempre.

Fim do mundo

Na tarde de sol forte e céu azul a moça de cabelos curtos e crespos conclui o check-in sem pressa, sentando-se em seguida à mesa do café, onde vê o namorado sorrindo lá dentro do notebook, com quem se encontrará a menos de um terço de dia dali. Sopra-lhe um beijo gracioso e apaixonado, ao que se juntam promessas de amor eterno. As marcas de batom nas pontas dos dedos lambuzam a blusinha branca que ela veste na altura do ventre quando massageia para a câmera o rebento dos dois.
Assistindo à preocupação da moça com a mancha, levanta-se da mesa ao lado um simpático velhinho, chapéu de palha na cabeça, barba rala e óculos de aros finos. Caminha até ela portando um lenço que acabara de comprar e oferece o que ela julga desnecessário. No entanto aceita o mimo com a sensibilidade materna, um pouco sorrindo, um pouco sem graça. Trocam duas ou três expressões espirituosas e de lá o velhinho retorna à sua mesa, onde recolhe carinhosamente a sua senhora, saindo juntinhos.
Vão-se costumeiros, no mesmo passo, os braços dados, os dois sorrindo, satisfeitos: ele, inflamado pelo gesto bondoso, ela, orgulhosa pela cortesia no marido. Andam vagarosos pelo corredor, por onde vai à frente um sujeito apessoado, arrastando uma grande bagagem sob um par de rodinhas. Vai imberbe, terno importado, sapatos lustrados. Nem olha para os lados nem vê o menino que brinca a poucos metros dali com um boneco e dois carrinhos, enquanto a mãe reclama no guichê.
Tem o cabelo mal desenhado, a cabeça está descolando do pescoço, a camisa soltou um botão, mas é seu brinquedo preferido, embora não caiba nem na Porsche preta nem no conversível vermelho que abre as duas portas. A mãe ralha por ter se afastado um pouco dela, com razão: defende os seus direitos e zela a criança, mas é uma só. A mulher do guichê se gasta por dentro. A companhia quer desempenho mas a burocracia emperra o seu tempo, emite um ticket invalidado e agora deve prestar contas à consumidora, corrigir o problema no sistema intermitente e sorrir ao mesmo tempo.
Impaciente está a faxineira, que voa pela primeira vez. Por perto está o filho diligente, que viera até onde a fila estancava, atrás de porquês. Tem as mãos grossas e calejadas de argamassa e um diploma que lhe imputava embarcar a mãe em visita ao nordeste sem embaraços. Segurando uma bolsinha a faxineira respira fundo três vezes como a colega lhe ensinara. Solta o ar pela boca na direção do filho, mandando-lhe adjunta uma silente esculachada: toda aquela demora, toda aquela gente, toda aquela confusão e o moleque vagueando, ao contrário de estar ao seu lado.
Ao seu lado brinca o menino a gosto solto, regalado pela impotência da mãe em lhe puxar pelas orelhas naquele instante. O boneco perde a cabeça, mas não há remédio melhor para o menino que a chegada dos avós: toma o chapéu dele, sobe aos braços dela e os três se juntam à mãe que ainda discute no guichê e ainda atende ao celular a ligação do marido, ansioso à sua procura.
Orientado, o marido chega todo imponente, empurrando a sua grande bagagem sob o par de rodinhas, a aura luzindo importância, a roupa impecável no corpo. Segue aos cumprimentos até o filho e os sogros e junto da esposa apresenta um cartão que resolve de imediato a demora na fila.
A faxineira caminha para dentro do avião a curtos passos, admirando a cortesia das comissárias e os estofados que julga mais confortáveis que os dos trens. Senta-se à janela por cima da asa e treme um pouco antes de um pequeno suspiro: está recostada num grande ônibus que voa e tudo então é desconhecido, à exceção da família que empacara na fila: a mulher e o menino com o chapéu de palha, o velho e a velha mais atrás e o marido empinado por último. Solta um ar de desdém ao grã-fino, essa gente que tem o rei na barriga. Olha os passageiros todos para mais um lampejo de chacota antes que se sente ao seu lado a moça de cabelos curtos e crespos, em cuja blusa branca ainda resiste uma manchinha de batom. Do chão para as nuvens pouco tempo se passa; do céu para a turbulência decorre apenas um instante que ela avalia ser o fim do mundo e o avião que decola não aterrissa, na tarde de sol forte e céu azul.

Pesadelo

Sono. Pesadelo. Suor. Incômodo. Tentativa. Sonho. Pesadelo. Cozinha. Água. Cama. Sono. Pesadelo. Luzes. Chinelos. Roupão. Porta. Chaves. Jornal. Notícias. Pesadelo. Tragédia. Inflação. Morte. Seqüestro. Pesadelo. Café. Sol. Alarme. Esposa. Discussão. Pesadelo. Calma. Quarto. Banho. Terno. Padaria. Leite. Esposa. Discussão. Pesadelo. Suspiro. Garagem. Carro. Rua. Avenida. Ponte. Farol. Miséria. Moeda. Pesadelo. Verde. Buzina. Nervoso. Calma. Moto. Buzina. Farol. Miséria. Pesadelo. Rádio. CBN. Dólar. Senador. Crise. Greve. Pesadelo. Buzina. Trânsito. Governo. Farol. Fumaça. Moto. Pesadelo. Verde. Juros. Desemprego. Avenida. Calor. Travessa. Celular. Bina. Chefe. Relógio. Pesadelo. Buzina. Estrondo. Calçada. Pneu. Furo. Prego. Macaco. Força. Estepe. Graxa. Calma. Posto. Sabonete. Toalha. Pesadelo. Carro. Avenida. Trânsito. Buzina. Moto. Farol. Fumaça. Calor. Pesadelo. Claridade. Óculos. Retrovisor. Gravata. Mulato. Malandro. Maltrapilho. Rodo. Balde. Oferta. Recusa. Insistência. Pesadelo. Paciência. Insistência. Recusa. Discussão. Verde. Buzina. Arranque. Nervoso. Calma. Moto. Fumaça. Farol. Amarelo. Vermelho. Rápido. Guarda. Multa. Pesadelo. Direita. Marginal. Ponte. Trânsito. Caminhão. Lentidão. Atraso. Celular. Discussão. Pesadelo. Farol. Atalho. Esquerda. Posto. Reto. Esquerda. Vaga. Trabalho. Discussão. Demissão. Pesadelo. Carro. Trânsito. Aflição. Desemprego. Contas. Dívidas. Sustento. Sarjeta. Amargura. Desespero. Pesadelo. Avenida. Prédio. Buzina. Breque. Elevador. Terraço. Pulo. Grito. Suor. Incômodo. Tentativa. Pesadelo!

Poder

"Você só precisa de poder para fazer algo nocivo. Do contrário, o amor e a compaixão são suficientes." (Osho)

A cartomante

A moça vai embora satisfeita. Tem um brilho no belo par de olhos, verdes e vívidos; é madura, ainda que esteja às portas da adultidade. Rapaz claro. Boa notícia. Dinheiro grande. Nos meses vindouros teria fartura. Ela chega em casa de um trânsito infernal. Estirada no sofá, de cabelo molhado e roupão, ela telefona para o amigo. Diz-lhe sobre as previsões da cartomante, uma promoção e uma imprevisível dinheirama ainda para aquele ano. E o melhor: um homem, jovem e de pele clara entraria na sua vida, fisgando o seu coração. Ela agradece a indicação. A leitora lhe pareceu confiável e a sua visita rendera otimismo e esperança.
O amigo é um sujeito benevolente. Muito sociável, cortês no trato, fino, educado. Desses que sempre oferecem auxílio. Esta sua conhecida estava aflita, indecisa entre a estabilidade no atual ou a ousadia num novo emprego. Tinha questões perturbantes a resolver e precisava de uma ajuda “assim, meio diferente”. Ele então recomendara a adivinha, leitora de tarô egípcio, com fama de boa, rosto comprido e chapéu conoidal.
Era uma boa pessoa. Tinha recheada a sua bagagem, a sexagenária. Tinha mesmo semblante de bruxa, um olhar invasivo, aquilino, fixo. Boa pessoa, dizia, a gente conhece olho no olho. No ócio gargalhava e contava piada como gente normal, mas diante das cartas baixava a magia e ela vingava, com sua voz solene, os mistérios da vida.
Os dois se freqüentavam. Conheceram-se pela esposa, uma cliente agradável e contumaz. O rapaz apreciava as suas histórias, sobretudo a sua sabedoria. Viviam debatendo temas diversos, mas discutiam essencialmente os descaminhos da raça, gente malvada, com pedidos estranhos ou maquiavélicos que ela naturalmente rejeitava. A companhia do rapaz por sua vez era divertida para a senhora. Apetecia-lhe as conversas mitigantes que entabulavam em alguns finais de tarde, ora de passagem, ora com a mulher. A constância da amizade permanecia expressiva na memória do rapaz e ele indicava a sapiência da feiticeira a todos os queixosos que conhecia.
Cuidado com uma mulher clara, de meia idade, no seu trabalho, disse uma vez para uma consulente. Ela vai querer puxar o seu tapete. Talvez por inveja; é bom se precaver. Tem um rapaz claro no seu caminho que vai te trazer uma notícia boa. Você sabe quem é? -perguntou à moça.. Ela se assanhou de feliz, tamborilando os dedos. Bem sabia quem era, a rapariga. Há tempos desejava a fortuna que previa a consulta. Foi embora empertigada com a novidade reservada.
A cartomante era muito intuitiva. Era procurada por sua sensibilidade fora do comum, interpretando muitas vezes o que as cartas não diziam. Conhecia a fundo alguns segredos da alma humana, mas tinha lá os mistérios que teimavam em se manter incógnitos, por mais que procurasse saber.
Mesmo de reputação irretocável, as figuras petulantes da cidade não deixavam de tentá-la com propostas indignas e cruéis, mas ela se mantinha irredutível contra a prática do desonesto e na insistência da requerente virava o maldito em pessoa, praguejando mil imprecações.
Um dia sentou-se à sua mesa uma pretensa janota, de bolsa cara e anéis nos dedos. Sacou a vidente problemas pela frente, aquele olhar manhoso, jeito esquivo e arrogância. A cartomante foi afinando o palavrório; conhecia bem o tipo. Foi dando corda para a moça, de início meio hesitante. Mas pouco a pouco ela foi emendando uma idéia na outra e o cenário desagradou a leitora. Era a foto do rapaz, seu amigo, que ela tinha nas mãos, rogando-lhe a magia de conquista. Em três tempos tocou a insolente às vassouradas. Que desplante, um homem casado, sério e honrado!
Ao amigo não se atreveu a narrar o episódio por receio do constrangimento. Ela mantinha confidência inquebrantável das suas conversas e, de tantas que eram, achava graça das coincidências que cortavam o seu baralho: a ex-esposa que teria o marido de volta, o ex-marido que voltaria para a esposa, o jovem que conheceria uma moça, uma garota que se apaixonaria por um rapaz. Por um instante pensou que todos eles combinavam de visitá-la em segredo.
Mas não deixou de notar que todas as moças que o rapaz indicava descobriam o valete de copas de seus baralhos. Era uma inegável coincidência: ele, um moço todo claro; a pele, os cabelos castanhos, os olhos verdes. A personificação do conde vermelho. Uma curiosa obra do acaso, pensou a vidente, recusando-se a levantar suspeitas do amigo.
Bastou que uma nova recomendação surgisse à sua sala. Nova jovem, novo corte, o mesmo valete. E a cartomante suspeitou, enfim, da fidelidade conjugal do camarada. A moça não quis contar do jovem claro que aparecia nas cartas e nem com rodeios a bruxa descobriu. Mas, intuitiva que era, sabia que alguma coisa estava errada.
As suspeitas sobre ele aumentaram quando suas visitas se escassearam, talvez causadas pelas interrogativas da feiticeira à última amiga que ele indicara. E se reforçaram de vez quando, em uma das suas freqüentes consultas, apareceram nas cartas da esposa as moças que tinham aparecido na sua mesa. A taróloga resolveu desconversar e escondeu as suspeitas da jovem. Poderia estar enganada; toda a simpatia do amigo talvez atraísse a inveja das solteiras e não havia indícios de casos extraconjugais no corte da esposa, apenas damas vermelhas e algumas pretensões.
Aí a cartomante amenizou sua suspeição. Um rapaz tão correto, bom moço, trabalhador, esperto. As conhecidas até poderiam tentar alguma coisa, mas era muito afeito à jovem com a qual se casara. Como pôde desconfiar dele, seu amigo freqüente, companhia agradável? Que tola tinha sido, investigando o conde da consulente! Ainda mais quando se encontrou com ela, namorando que estava, de mãos dadas na rua, um rapaz clarinho e castanho, tão valete de copas quanto o amigo que condenara!
Sentiu-se malvada e precipitada, julgando uma pessoa tão querida pelas forças das circunstâncias. Decidiu revitalizar a amizade até então sob uma névoa dissidente, telefonando para o casal com o argumento de um churrasco fraternal. A esposa, atendendo a ligação, informa-lhe sobre a separação dos dois. O motivo? Adultério.

Buscai e achareis

"Pedi e se vos dará; bucai e achareis; batei à porta e se vos abrirá; pois todo aquele que pede, recebe, e quem procura acha e se abrirá àquele que bater à porta." (São Mateus 7, 7-11)

"Mas pedi sinceramente, com fé, fervor e confiança; apresentai-vos com humildade e não com arrogância, sem o que sereis abandonados às vossas próprias forças e as quedas que sofrereis serão a punição do vosso orgulho." (Evangelho segundo o Espiritismo)