No país das maravilhas

Sempre vi com um pouco de relutância os comentários sobre cinema que traziam menções técnicas sobre os artistas, profissionais ou diretores. Para nós, espectadores, basta-nos que os filmes nos entretenha ou nos acrescente algo mais. Frequentar os mesmos atores ou cineastas é o mesmo que colecionar os diferentes álbuns da mesma banda.
Assim, assistir à “Alice no país das maravilhas”, do norte-americano Tim Burton, ainda em cartaz nos cinemas, é ingressar nos mesmos universos sombrios e fantásticos de “Os fantasmas se divertem”, “O estranho mundo de Jack”, “Swenney Todd – O barbeiro demoníaco da Rua Fleet”, “Batman – O retorno”, “A noiva cadáver”, “A lenda do cavaleiro sem cabeça” e outros.
Não é de se espantar que a Alice de Burton seja bem pitoresca, inserida no contexto da Inglaterra Vitoriana, onde a educação e os costumes eram muito valorizados. Não só Tim Burton mas o próprio Lewis Carrol, autor do livro homônimo, publicado em 1.865, dissociam o comportamento da Alice ao que era esperado para a época. Ela age segundo os seus impulsos, correndo atrás do coelho e se metendo na grande toca sob a cerca, sem imaginar como sairia dali.
A Alice de Lewis é uma crítica velada à sociedade inglesa moralizante do Século XIX. A Alice de Burton é mais moça, que volta à toca do coelho 13 anos depois. E, embora o cenário esteja de fato mais sombrio e o Chapeleiro Maluco seja mais atuante, o Coelho Branco continua apressado, os gêmeos Twiddle-Dee e Twiddle-Dum continuam divergindo, a Rainha de Copas continua autoritária e o Gato de Cheshire continua sempre sorrindo.
As Alices de ambos vão atrás de aventura, sem preocupações e sem dúvida voltam mais resolutas. No país às avessas – onde todos são malucos –, vale seguir a vida com alegria, sem ter sentido para tudo, onde as charadas não tem resposta e a tirania perde a coroa para a amizade e para a inocência. Assim, começando pelo começo e continuando até o fim, o roteiro da nossa vida terá sido, pelo menos, mais fantástico.

Falando em ilusões...

Boi na linha

De "O guia dos curiosos - Português", de Marcelo Duarte

A primeira estrada de ferro do Brasil foi construída pelo Barão de Mauá e ia de Raiz da Serra à Petrópolis. O projeto não previa a colocação de cercas ao redor dos trilhos, por isso é comum que rebanhos de bois cruzassem ou até deitassem nas linhas. Isso obrigava os ferroviários a pararem a máquina para expulsar os animais do caminho. Por isso surgiu a expressão "tem boi na linha".

Como nuvens pelo céu

Fernando Pessoa

Como nuvens pelo céu
Passam por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.
São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.
Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transforma?
Que coisa inútil me dói?

Um cartum do Dorinho

Um exemplo de vida

Hoje é um dia muito especial para a história de Santa Rita, nascida em 1.381, numa cidade perto de Cássia, na Itália. Nasceu há exatos 629 anos e morreu há exatos 553 anos. Sim, Santa Rita nasceu e morreu no mesmo dia 22 de maio. É como se a mesma data homenageasse nascimento e morte, amor e sofrimento na mesma e distinta pessoa. Em se tratando de Santa Rita, é uma justíssima homenagem.
A contrariedade é o substantivo para entender a sua vida, marcada por dor e tragédia; a obediência e o perdão são os seus maiores adjetivos. Seu próprio nascimento já é um milagre: veio ao mundo quando a mãe, Amata, tinha 62 anos.
Os pais eram anosos e sem muito estudo, mas instruíram Rita nos caminhos de Deus. Visitavam os necessitados da região, a quem levavam oração e conforto. Temendo deixar a filha sozinha no mundo, permitiram que ela se casasse, aos 16 anos, com Paolo Mancini.
Embora o desejo de Rita fosse entrar para o convento, obedece a vontade dos pais. E quis o destino que o pretendente fosse menos afeito à religiosidade do que à rudeza e à bebida. Tiveram gêmeos, com os mesmos desvios de caráter. Rita sofreu com a infidelidade e com os maus tratos do marido, mas se manteve obediente e dedicada por todo o matrimônio. Tanta benevolência levou Paolo ao arrependimento, 20 anos depois. Perdoado, tornou-se um homem mais virtuoso, ainda que por pouco tempo: morreu assassinado, em decorrência dos maus atos do passado. Os filhos prometeram vingá-lo, mas morreram doentes antes de sujarem as mãos e as almas. A história conta que Rita teria pedido a Deus que os levassem, como impedimento de se tornarem maus e vingativos.
A vida de Santa Rita de Cássia é sobretudo uma mensagem de obediência, de perdão, de esperança, de humildade e de amor incondicional. É a padroeira da família, instituição que tanto defendo como o primeiro capítulo para a história de um mundo melhor. É o símbolo da mãe e da esposa diligente. É quem tudo suporta em nome da paz e da unidade nos lares da vida.

O dia da caça



Não somos todos livres

Nesta quinta-feira completou 122 anos a sanção da Lei Áurea, que legalmente extinguiu a escravatura no Brasil, assinada pela princesa Isabel e pelo então ministro da agricultura Rodrigo Silva. Quase 1 milhão de escravos foram libertados, num país com uma população de 15 milhões de habitantes.
Foram séculos de servidão e maus tratos aos africanos, trazidos por portugueses e holandeses de suas colônias para a mão de obra forçada, principalmente na lavoura. Vinham em navios negreiros e eram tratados como mercadorias; trabalhavam demais e comiam de menos, vestiam trapos e dormiam presos a correntes que os impediam de fugir.
A escravidão é um dos capítulos mais bizarros da história da humanidade. E, pior do que descobrir que os maias eram escravocratas –, assim como os astecas, os incas, os hebreus, os egípcios, os espartanos, os gregos e os romanos, os indianos e os chineses –, é constatar que o escravismo ainda é uma prática atualíssima, inclusive no nosso país.
Mesmo depois da lei abolicionista de 1.888, o governo brasileiro reconheceu “a existência de formas contemporâneas de escravidão em seu próprio território”, instituindo planos e programas para erradicação do trabalho escravo, que ocorre principalmente nas zonas rurais, sob a forma de cativeiros por dívidas, das servidões doméstica e infantil e da ilegalidade de contratos entre patrões e trabalhadores.
Atualmente há milhões de escravos pelo mundo; entre os árabes e os muçulmanos, na Ucrânia e na Moldávia, na Tailândia, nas Filipinas e no Sudão; há as escravas domésticas, a escravatura branca, a prostituição forçada, o tráfico de crianças. Há mentira, seqüestro e falsas promessas que levam os incautos da esperança de uma vida melhor para a tragédia anunciada.
O 13 de maio é uma data histórica e deve ser lembrada como um símbolo da luta por um mundo igualitário, mesmo que o negro ainda sofra preconceito, como a mulher, o deficiente, o homossexual. E se o homem deseja mesmo evoluir é bom que pare de agir como um bárbaro.

Rolex

São outros 500

Do livro "Guia dos Curiosos - Português", de Marcelo Duarte

A expressão tem origem na Península Ibérica do século 13. Quando qualquer fidalgo da época que se sentisse lesado por alguma injúria tinha o direito de pedir a condenação do agressor, que, para ser absolvido, teria de pagar 500 soldos (moedas de ouro na Roma antiga). Depois disso, caso cometesse outro insulto, o agressor era obrigado a pagar outros 500 soldos. Daí a expressão.

Uma bênção dos deuses

Indiano que "não come nem bebe nada" intriga cientistas

da Folha de São Paulo


Um iogue octogenário que diz ter vivido mais de sete décadas sem beber ou comer tem causado espanto em cientistas da Índia.
Prahlad Jani, 83, passou duas semanas sob constante observação de 30 médicos e de câmeras de filmagem, em estudo que terminou na última quinta. No período, ele não ingeriu nada, não urinou nem defecou, segundo os observadores. "Continuamos sem saber como ele sobrevive. É um mistério", disse Sudhir Shah, neurologista.
"O único contato de Jani com líquidos foi para fazer gargarejos ou se lavar", disse G. Ilavazahagan, especialista em fisiologia. "Se ele não tira sua energia dos alimentos ou da água, deve tirá-la de outras fontes, e o sol é uma delas", ponderou Shah.
O estudo foi conduzido pelo Ministério da Defesa, que quer tirar de Jani lições sobre sobrevivência para militares e vítimas de tragédias naturais. Os resultados finais são prometidos para os próximos meses.
Em sua aldeia natal de Ambaji (norte), o iogue alega que foi abençoado por uma deusa quando tinha oito anos e que isso lhe permite viver sem alimentos.
Em 2003, segundo a BBC, ele já passara dez dias sob observação de uma equipe médica, também sem consumir nada, mas apresentando boa saúde mental e física.

Falar é fácil

de Carlos Drummond de Andrade
Falar é completamente fácil,
quando se têm palavras em mente
que expressem sua opinião.

Difícil é expressar por gestos e atitudes
o que realmente queremos dizer,
o quanto queremos dizer,
antes que a pessoa se vá.

Mona Lisa

Para quem não conhece
a versão Mona Lisa
do colombiano Fernando Botero

Mater Amabilis

A maternidade é o capítulo mais maravilhoso do sagrado livro da família. Não há relação mais visceral do que a da mãe com os seus rebentos. Ainda que haja personagens decisivamente importantes nesta história, o pai, os irmãos, os primos, tios, os avós, os filhos, os netos, os próximos e os distantes, a mãe é o primeiro berço e o primeiro conforto.
Enquanto o pai é o puxão de orelha, a mãe é o sorriso de consolo. Enquanto o pai é a voz grave, a mãe é o silêncio de apoio. Enquanto o pai é a ordem e a retidão, a mãe é a brandura e a complacência. Enquanto o pai é planejamento e disciplina, a mãe é uma dádiva de paz e ternura.
Que me perdoem os produtores independentes e os libertários de plantão, mas nada forma um ser humano tão sólido quanto o equilíbrio das poderosas virtudes que pais e mães representam. Nada sustenta tanto o crescimento dos filhos quanto um ambiente familiar harmonioso e bem provido, ainda que hoje o bom provimento apenas não baste. O filho dos novos dias precisa ser ensinado a enfrentar a frustração, porque os tempos são outros. O filho dos novos dias tem pais mais condescendentes, tem mais liberdade e menos da rigidez de antigamente.
Aliás, antigamente as famílias eram mais firmes e unidas e o papel da mulher era essencialmente mais maternal e mais conjugal. Antigamente, eram mais mães e esposas do que propriamente mulheres. Com a modernidade, assumindo as responsabilidades dos maridos que iam para a guerra, lutando pela emancipação feminina e brigando com os homens no mercado de trabalho, tornaram-se mais mulheres do que propriamente mães e esposas.
As mães são aquelas que pensam em si mesmas por último, que acordam primeiro e que preparam tudo enquanto todos ainda dormem. Mães não levam nem trazem, acompanham. Mães sofrem em silêncio, choram escondidas, dormem sentadas enquanto os filhos não chegam; lavam, passam, cozinham e cuidam de tudo e de todos ao mesmo tempo. Mães estão sempre com os filhos, mesmo quando não estão.

Entrelinhas

WWF

Blazer

De "O Guia dos Curiosos - Português",
de Marcelo Duarte

O capitão do barco inglês H. M. S. Blazer fazia questão
que seus marinheiros usassem japonas azuis com botões de
metal. Foi com base nesse modelo que o estilista
Pierre Cardin - italiano filho de franceses - criou o blazer.

Mais uma da folhinha

Uma poesia para começar o dia

Conselho
de Fernando Pessoa

Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és -
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...

O bibliotecário

Uma do milanês Giuseppe Arcimboldo,
"O bibliotecário" data de 1.566,
séculos antes de surgir o surrealismo

O caminho do meio

De dentro do carro, o cinto de segurança ainda preso, vejo bem à minha frente a rua deserta. Passam dois ou três carros no pouco tempo em que fico ali parado. Avalio que tão inquietas pessoas teriam o impulso de saltar porta afora e correr para a rua, para a calçada ou para um sentimento qualquer de vivacidade.
Como dizia para a nova amiga Ida Cabrini, escritores veem histórias onde não passam carros, na calmaria, no deserto da cidade. Poderiam contar tanta coisa como eu conto agora da menininha que saiu ao portão com a sua estripulia infantil e o seu cabelinho despenteado.
Tem no máximo 4 anos, no corpinho um vestido branco e nas mãos dois pequenos saquinhos que pretende depositar sobre a lixeira que está adiante dali alguns passos seus. Atrás dela vem outra mocinha, com o dobro da sua idade e o dobro do seu tamanho que, por esta razão, pode tomá-la ao colo e içá-la à altura de onde já estão alguns sacos empilhados, por cima dos quais ela coloca os seus. Lá do alto estica os bracinhos e os joga brincalhona, voando para casa nos braços da outra.
E fico pensando por um instante como os adultos procedem em suas vidas: rearranjam a lixeira, deixam para baixo a caixinha de papelão e os sacos mais leves e põem para cima os sacos maiores e mais pesados; acomodam tudo como se daquilo dependessem as suas vidas.
A alegria infantil me dizia que a vida era mais simples. Bastava por o saquinho ali e pronto, sem muita elegia, sem muito badulaque, sem muita preocupação. Mas bastou que se passassem alguns minutos para que a razão dos adultos revigorasse. Leves s soltos, os saquinhos da menininha voaram ao primeiro vento. E fui embora pensando no caminho do meio: a felicidade pode estar aí, entre a seriedade e despreocupação.

Sony

Trabalho

Escrever sobre a saúde e o trabalho é o equivalente a considerar a história e a geografia no estudo de um país. Mais do que isso: ao avaliarmos a etnia, a religiosidade, os sistemas de governo, o relevo, o clima, a hidrografia, a vegetação e as riquezas naturais de determinado lugar, estamos considerando aspectos muito importantes da sua evolução.
Como a nossa saúde é influenciada por uma série de atributos – a higiene e a limpeza, a boa alimentação, a prática de exercícios físicos, a regularidade do sono, a capacidade de lidar com as frustrações, o contentamento, enfim –, o nosso ofício também se rende a outros quesitos igualmente fundamentais: a nossa educação, a nossa instrução, o nosso caráter, a nossa personalidade, a nossa disposição.
A nossa riqueza natural é o talento inato com que nascemos no Morro do Livramento, como Machado de Assis, gago e epilético, filho de um pintor de parede e de uma lavadeira, sem estudos, nascido pobre e mulato num país escravocrata, e nos transformamos no mais célebre escritor de uma nação, poliglota, crítico literário, intelectual respeitado e fundador e presidente perpétuo da Academia Brasileira de Letras. Assim como assistir a algumas aulas vendendo doces em colégios, aprender francês conhecendo o forneiro da padaria de Madame Gallot ou conhecer Manuel Antonio de Almeida como ajudante de tipógrafo, evoluir é sobretudo aproveitar as oportunidades. Não como vemos hoje no país do jeitinho, onde gente capaz fica para trás às custas de indicações políticas, de racismo, da aparência, da procedência ou do que quer que seja contra o merecimento.
Ninguém melhor do que Machado, meu maior exemplo de autodidatismo, de garra e de superação para ilustrar o merecimento. Hoje, com tanto livro, com tanta faculdade, com tanto curso, temos tantos indolentes, tanta miséria de espírito e tão poucos questionamentos. Como um dos pilares da nossa vida, como a família, a fé, a saúde, os amigos e o conhecimento, o trabalho merece toda a nossa consideração.