Senna

Tive uma grata surpresa ao descobrir que o filme que estava prestes a ver, sobre a meteórica carreira de um dos maiores esportistas brasileiros – e decerto mundiais –, era legendado. Tratava-se de “Senna – beyond the speed of sound" (Senna, além da velocidade do som), documentário britânico lançado em novembro em homenagem aos 50 anos do nascimento do paulistano Ayrton Senna.
Lembro-me de ouvir no rádio as conquistas de Senna enquanto disputava a Fórmula 3. Não me foi estranho quando seu nome apareceu na Fórmula 1, embora eu gostasse mais de futebol. Eu era um menino lutando contra o sono enquanto ele lutava com um carro modesto no GP de Suzuki em 1.984, onde, por pouco, não chegou em primeiro.
O que mais surpreende em Senna é a sua disposição para a superação. “O primeiro lugar ou nada” – dizia. E fazia misérias ao volante, como se o carro fosse uma extensão de si mesmo. Largava mal, sofria infortúnios e ficava para trás em princípio, mas com inata habilidade reconquistava posições, uma a uma, até vencer no final. De estalo me lembrei do lindo “Carruagens de fogo”, em que também um esportista, também um corredor, obteve êxito depois de cair nas raias do atletismo. Nada pode ser mais comemorado, pensei, do que a conquista merecida, do que o esforço elevado à exaustão.
O filme completa um percurso conhecido, embora mostre cenários inéditos, pontuados por depoimentos, tensões, emoções e entrevistas de Senna em inglês. É possível sentir a sua angústia nos acidentes que presencia, a sua solidariedade, sua luta por melhores condições de segurança. É visível a sua aversão aos avanços da tecnologia, em contraponto ao desempenho dos pilotos; mais valia correr num kart, onde existia menos politicagem.
É inspirador contemplar a sua ascensão nas pistas, carregando garra, retidão e Deus ao cockpit, para junto de quem se seguiu à curva de Tamburello, deixando como legado o exemplo do verdadeiro campeão: aquele que nunca desiste da vitória, mesmo quando a partida parece perdida.

Bodas de Rubi

Quando as trombetas anunciarem 22 de novembro e pelas portas passarem as damas da honra e da honestidade, carregando nas próprias mãos uma boda de rubi, serei capaz de contemplar os 40 anos que os meus pais, Renato e Antonia, completam com louvores.
Ao me dar com a igreja tão enfeitada, com os trajes tão mais sóbrios e os rostos tão familiares, posso me estender da água benta ao altar num único sobrevoo, como se eu mesmo abençoasse a união dos noivos. O padre é o mesmo com quem eu me encontro semanalmente, o tapete vermelho está salpicado de rosas e a cerimônia é católica, mas num interlúdio penso no preceito budista em que os filhos escolhem de que pais vão nascer. Serei feliz na minha escolha? -pergunto aos anjos dos vitrais.
Lá fora vejo divórcios e dores entre pais e mães, que me aquietam; vejo ofensa e falsidade como se um juramento fosse um estalido rouco de sinos. Vejo histórias que terminam por nada e vejo o privilégio da história que por nada termina. A vida é feita de escolhas, digo aos anjos dos vitrais.
Na troca de alianças vejo os mesmos olhares serenos que passaram pelos contratempos sem nenhum desdouro. Posso ver o marido que ensina a esposa a dirigir e vejo o homem motorista e passageiro com a mesma compleição; posso ver a noiva se dar mais à família que com seus próprios encantos. Vejo um sorriso e depois outro, como se tem sucedido em sinal de bonança. “O amor verdadeiro – disse o escritor Victor Hugo – é como o mar: por mais violentas que sejam as tempestades à superfície, o fundo permanece calmo.”
Ouço o valor da promessa, maior à presença divina, ressoar como um cântico pelas chamas das velas que ainda cintilam. Do altar à vida lá fora andam sob o mesmo compasso, o mesmo com que minha irmã, Maria Helena, e eu nos orgulhamos de andar. De braços dados são companheiros desde a chuva de arroz e o beijo na fronte ainda exala o respeito que eu, como filho, aprendi só de olhar. E sou feliz na minha escolha, digo aos anjos dos vitrais; mais feliz não poderia ser.

Outros mosaicos

Desde os filmes-mosaicos de Robert Altman (leia-se meados da década de 1.970) até hoje tem aparecido dezenas de gratas surpresas – dentre as quais algumas muito recomendadas –, não só pela característica intercalação de histórias, mas pelo natural envolvimento que provocam até se costurarem no final. Lembro-me, por exemplo, de “Grand Canyon – Ansiedade de uma geração” (Grand Canyon, 1.991) e de "Corações apaixonados” (Playing by heart, 1.998), ambos com elencos estelares, ambos às voltas de um tema central (outras duas peculiaridades do gênero), ambos interessantíssimos. Além de Altman, o francês Alain Resnais também se notabilizou pela direção de filmes-mosaicos, entre os quais recomendo “Medos privados em lugares públicos” (Coeurs, 2.006) – ainda em cartaz no cinema Belas Artes, em São Paulo, um recorde de permanência –, “A vida é um romance” (La vie est un roman, 1.983) e “Amores parisienses” (On connait la chanson, de 1.997).
Entre os mais recentes, indico o colombiano Rodrigo Garcia – filho do escritor Gabriel Garcia Marquez –, que vem se celebrizando nos Estados Unidos por dirigir e escrever dezenas de episódios para séries cultuadas como “In treatment”, “Six degrees” e “Os sopranos”, entre outras. Entre os seus filmes-mosaicos, destaque para “Coisas que você pode dizer só de olhar para ela” (Things you can tell just by looking at her, 1.999), “Questão de vida” (Nine lives, 2.005) e Destinos ligados (Mother and child, 2.009), sensíveis abordagens do universo feminino.

Um furacão de liberdade

O parisiense Jean-Paul Sartre (1.905-1.980) não teve infância. Perdeu o pai logo aos 15 meses, quando foi levado pela mãe ao amparo do avô materno em Meudon, em 1.906. Até os 10 anos cresceu cercado de atenção, estudando em casa com professores particulares, mas distante das outras crianças.
Simone de Beauvoir (1.908-1.986) já sabia, aos 15 anos, que seria uma escritora. Aos 21 já se tornara imbatível em Gottfried Leibniz, estudando o filósofo alemão com o afinco de um castor.
Os dois se conheceram na mais prestigiosa universidade francesa, a Sorbonne, onde estudaram juntos para a Agrégation – uma espécie de concurso para se tornarem professores na entidade – em filosofia, o que também obtiveram juntos, com louvores, em 1.929: Sartre foi aprovado em primeiro lugar; Beauvoir, em segundo.
A história da afinidade entre os dois, de como se conheceram, de como se enamoraram e de como estabeleceram uma inusitada relação poligâmica pode ser encontrada em várias autobiografias, entre as quais se destacam “As palavras” (Le mots, 1.964), de Sartre, e “Memórias de uma moça bem comportada” (Mémoires d'une jeune fille rangée, 1.958), de Beauvoir.
Baseado em tanto material disponível, o filme “Os amantes do Café Flore” (Les amants du Flore, 2.006) percorre, a partir da Sorbonne, a trajetória dos dois: a precocidade, o amor pelos estudos, o amor pela filosofia, o amor pela literatura, o amor de um pelo outro e os amores de um e outro pelos outros – e outras. “Não tenho vocação para a monogamia – diz Sartre a Beauvoir –, sou um escritor, preciso de ar, novidade, emoção. Só preciso de você, mas preciso de amores eventuais.”
O filme recende filosofia. “Jure, por Heidegger”, diz uma amante a Sartre. Os entremeios do existencialismo, baseado no qual o homem é o responsável direto pelo seu destino, abrem-se sob as suas figuras centrais – incluindo uma participação de Albert Camus –, expondo mais o cotidiano e o comportamento do que o aprofundamento filosófico.
Como mulher, Simone de Beauvoir sopra novos ventos: atribui a infelicidade não à Providência Divina, mas à hipocrisia nas pessoas, a austeridade nas famílias, a reclusão do casamento. “O seu marido teve que morrer – diz à mãe, historicamente subserviente ao pai – para que você sonhe com um pouco de felicidade.”
Como escritor, filósofo e personagem, Sartre é um aguilhão. Atropela ritmos, preceitos, convenções. “O respeito à instituição paralisa – diz à classe, depois de boxear contra um aluno que hesitara golpeá-lo –; quero cérebros livres! Garanto a vocês que terão mais êxito que os outros cursos.” Como filme, “Os amantes do Café Flore” não é só biográfico, é instigante. Parece eleger seu par de protagonistas para incentivar não só um ao outro, mas em quem lhes botar os olhos. “Sacuda-se –, diz Sartre a Beauvoir – senão terminará sendo uma senhora”! “Pare os violinos!”, “temos que soprar um furacão de liberdade no mundo!”

Destino

A cena parece comum: alguém numa estrada diante de três caminhos a seguir. Não há placas ou indícios de que um ou outro seja melhor ou pior: são apenas caminhos.
Diante da chuva em Nova York, três táxis estacionam aos sinais de passageiros, entre os quais está a atriz novata, recém-saída de qualquer lugar onde fizera compras.
Em Osasco quatro amigas vão ao shopping center, distante da escola poucas quadras, perto o suficiente para um lanche na aula vaga. Duas delas vão à frente, pouco mais ligeiras; as duas outras vão em seguida, mais vagarosas porque um sinal vermelho segurou-as por um instante.
No guichê da companhia aérea o executivo esbraveja com a operadora cujo engano acabou por tira-lo do voo para uma reunião importante em Recife. Na vaga dele vai se sentar, pela primeira vez num avião, um pedreiro pernambucano em visita à família.
A atriz novata escolhe o mesmo táxi que o celebrado cineasta, que topa dividir a viagem com ela. Curiosamente o destino dos dois é quase o mesmo e a atriz é tão irreverente quanto bela aproveita a oportunidade para dizer que é boa no que faz, o que ele decide verificar. Desta corrida vai nascer uma das grandes estrelas de Hollywood.
As duas amigas ligeiras chegam primeiro ao shopping center – e à praça de alimentação –, e não sobrevivem à explosão em decorrência de um vazamento de gás, à qual escapam as outras duas. Sinais vermelhos, do que tantos reclamam, podem salvar vidas.
O executivo empalidece quando descobre que o avião que perdera por incompetência da ruiva com sardas cai sem deixar sobreviventes. Vai nascer de novo depois disso. Vai observar os sinais da vida e do trânsito como se eles dissessem por seus meios: ‘espere um instante’, ‘vá com segurança’ ou ‘não vá dessa vez’. Vai compreender o que os enfezados, os quadrados e os sistemáticos insistem em não ver, achando que controlar é o maior dos verbos humanos. Quem esbraveja pode não estar ouvindo a vida falar e pode, sem saber, estar insistindo em um lugar num voo condenado.

O que não mata deixa mais forte

(Publicado na Folha de São Paulo)

Estudo com americanos confirma que passar por adversidades gera resistência psicológica

JULIANA VINES
DE SÃO PAULO

O que não mata deixa mais forte. Além de ser uma citação do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, essa é a constatação de um estudo da Universidade de Buffalo, nos Estados Unidos, que vai ser publicado na próxima edição do "Journal of Personality and Social Psychology".

Para chegar a essa conclusão, o pesquisador Mark Seery e sua equipe acompanharam 2.398 americanos entre 2001 e 2004.

As pessoas que passaram por acontecimentos adversos e traumáticos tiveram menos sintomas de estresse e relataram mais situações de bem-estar do que aquelas que passaram por menos dificuldades.

Foram avaliadas 37 categorias diferentes de trauma psicológico ou físico, incluindo morte de um familiar, doença ou acidente, desastres naturais, divórcio ou presenciar um ato de violência.

"Entendemos que existe uma relação entre experiências ruins e resiliência", diz Seery à Folha.

A resiliência é um termo da física adotado pela psicologia. Na ciência, é a possibilidade de um material voltar à forma anterior depois de sofrer pressão ou deformação. Para a psicologia, é a capacidade de uma pessoa enfrentar situações negativas e retirar algo de positivo da experiência.

De acordo com Seery, o cérebro é capaz de aprender com cada trauma e se tornar mais experiente e mais forte.

Segundo a psicóloga Rosaly Ferreira Braga, do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência da Universidade Federal de São Paulo, é preciso ter cuidado ao falar em desenvolvimento da resiliência.

"É possível ficar mais forte, mas há traumas mais e menos impactantes. Não é porque a pessoa sofreu um assalto que ela vai poder ser vítima de vários sem que isso traga consequências", diz.

Não se sabe ao certo o que faz uma pessoa naturalmente mais forte do que outras. Sabe-se apenas que algumas reagem positivamente a situações negativas, enquanto outras desenvolvem transtornos como o estresse pós-traumático e a depressão.



ENFRENTAMENTO

A psicóloga e pesquisadora Ana Cristina Vasconcellos acompanhou em sua dissertação de mestrado famílias com pessoas paraplégicas.

"É muito mais fácil encontrar pessoas que não são resilientes. A vulnerabilidade é muito mais comum. Um fator decisivo no processo de enfrentamento é a família", diz.

Para o médico psiquiatra José Toufic Thomé, coordenador do Departamento de Intervenção em Desastres e Catástrofes da Associação Brasileira de
Psiquiatria, as pessoas deveriam pensar em como desenvolver uma "imunidade psíquica".

"Precisamos aprender a conviver com adversidades sem adoecer. A sociedade moderna não pensa em trabalhar a resiliência."

Isso poderia ser feito, de acordo com Seery, deixando de lado estratégias prontas de como superar problemas. "Respostas diferentes são normais. O maior equívoco é pensar que todos devem reagir da mesma forma. Falar sobre o trauma, por exemplo, nem sempre é a melhor coisa a ser feita."

Mosaicos

Um dos gêneros mais interessantes – e recentes – da história do cinema é o filme-mosaico, o chamado multiplot, caracterizado pela maneira diferente de contar a história. Trata-se daqueles filmes em que vários diferentes personagens – aparentemente desconexos – vão se interligando pouco a pouco como as peças de um mosaico. Há teses que defendem a autoria do filme com essa estrutura de narrativa ao norte-americano Robert Altman (1925-2006). Em "Nashville", de 1975 e "Cerimônia de Casamento" (A wedding, de 1978), Altman já se utilizava dessa fórmula, que só mais tarde, com "Cenas da vida" (Short cuts, 1993) –, baseado nos contos do minimalista Raymond Carver (1938-1988) – tornaria-se célebre. Há estudos sobre a importância ideológica de "Cenas da vida", um filme que se passa entre a classe média baixa de Los Angeles e reproduz, em seus vários núcleos de personagens, as condições em que viviam. A ideia era dar uma visão estrutural da situação através da somatória das perspectivas.
Um dos filmes-mosaicos mais famosos é "Crash – no limite" (foto), de 2004, premiado com o Oscar de melhor filme, edição e roteiro original. Trata-se de um ótimo filme, surpreendentemente envolvente, questionador, polêmico, inquietante.
Outras dicas são os filmes do mexicano Alejandro Gonzáles Iñarritu, que tem se celebrizado como diretor de filmes-mosaicos: "Amores brutos" (Amores perros, 2000), "Babel" (de 2006, com Brad Pitt) e "21 gramas" (21 grams, de 2003) já são grandes sucessos de público.

Comer, rezar, amar – O filme

Nessa semana finalmente assisti ao filme sobre cujo título havia comentado antes. Trata-se de “Comer, rezar, amar” (Eat, pray, love; 2.010), que vendeu milhões de livros e ingressos mundo afora, que notadamente interessou a muitas pessoas e que oficialmente desagradou a outras tantas.
Que o bendigam os amantes das viagens, das reviravoltas e das lendas do amor perfeito; que o maldigam os italianos, desgostosos pela originalidade que o filme não mostra em relação aos seus costumes e ao seu país, embora tantas das suas nuanças estejam lá.
Em outro momento eu dizia sobre as expectativas que o filme me causava e isso apenas baseado no título. Escrevi, em pleno Dia Mundial da Alimentação, 16 de outubro, que comer, rezar e amar são verbos nutritivos por excelência, do corpo e da alma.
Escrevi também por familiaridade aos títulos, aos quais guardo grande importância desde os tempos do colégio, quando meu professor de português, Viriato Trancoso, fazia-me capturar dos livros o seu sentido. “Qual a razão do título?” – perguntava-me nas provas.
E aqui, como Clarice Lispector, também eu poderia dar outros títulos para o mesmo enredo, sinal de que as lições realmente aparecem para aqueles que as procuram, sejam as histórias ou os filmes bons ou ruins: há sempre uma passagem, um diálogo ou uma cena que valha a pena.
Talvez eu trocasse os três verbos substanciais por três substantivos comuns ou talvez o chamasse “Viagens, prazeres, descobertas”, porque a busca de Elizabeth Gilbert – a escritora retratada na cinebiografia, interpretada por Julia Roberts – não era tão espiritualizada como eu pensava. Pelo contrário: parece rezar pela primeira vez quando está prestes a se divorciar, ainda que sem razão aparente. E sai em busca do que não sabe ao certo.
Mas há belas mensagens no filme. Ensina algo sobre a moderação, sobre o desapego, sobre a solidariedade, sobre a tradição, sobre a família: "A única coisa permanente na vida é a família". Ensina sobretudo que para aprender basta estar vivo