Por quem os sinos dobram

Os sinos dobram por ele. Publicitário bem sucedido, feliz com a família e ela com ele. Bem relacionado com os colegas, funcionários e amigos e eles com ele. Um cotidiano atribulado: viagens, hotéis, exterior, novos clientes; uma vida intensa e ela com ele.
Reflexão como esta é combustível para ele. Pobre e desgraçado, viu seus cofres encherem por puro talento. Ele, que contava moedas para o sorvete e rastejava sob a roleta do ônibus agora viajava em aviões e carros luxuosos. Uma vitória merecida num contexto difícil.
De lá, do alto da sacada, com a cidade a seus pés e a brisa no rosto, num instante de sossego, sozinho e distante, ele pensou: os sinos dobram para mim.
A rotina era estressante. Reuniões, contratempos, chegadas, partidas. Tensão, responsabilidade, noites mal dormidas, horários, agendas, supervisões, nervoso. Nervoso. Nervoso. Um dia ele tombou. Acordou grogue com gente às suas voltas e o peito plugado. Uma dúzia de flores no vaso, 3 médicos presentes, 2 aparelhos de medição e uma realidade: ou diminuía o ritmo ou viajaria pela última vez.
Precavido, ele obedeceu. Deu ao primogênito a sua maior aspiração: o poder de conduzir os seus negócios. Primeiro sob às suas sombras, daria posse paulatina dos seus segredos e filosofias. E se manteve mais perto do pupilo do que da empresa. Apenas em questões importantes ou que requeressem a sua experiência ainda preponderava. Instruía o filho, um sensato estudante, a administrar sua agência.
Que dia feliz, pensou o filho. Herdar os negócios do pai, de vento na popa e ter como mestre o mestre da propaganda! Ele, o desprezado. Que talvez sobrasse num canto, como sempre; apenas um interessado, um atendimento aqui, uma criação acolá, uma conselhozinho quem sabe. E o pai lhe surpreendeu! Deu-lhe a chance da sua vida e se revelou tão paternal como nunca sonhara.
Os sinos dobraram por ele, disse em voz alta se lembrando do passado, com os filhos pequenos e a esposa reclamando-lhe a ausência. Era um simpósio sobre a responsabilidade social na propaganda e conversava com alguns publicitários numa roda animada. A certa altura, um deles mostrou comedimento na profissão; o nascimento da primeira filha e a afeição pela família o distanciavam um pouco dos negócios e ele preferia mantê-los estacionados, guardadas as devidas considerações, para que lhe sobrasse mais tempo com ela. Seu primeiro pensamento foi rotular aquele pai de família de medíocre, com tantas variáveis e gestões de negócio disponíveis. Tantos anos depois, lembrando-se propositadamente daquele dia, reconheceu que a intenção do homem da roda era mais nobre do que imaginara: ser um pai de família companheiro não tinha dinheiro que pagasse. E repetiu para si mesmo, com a voz embargada: os sinos dobraram por ele.
O filho progrediu notavelmente. Com o seu apoio, ele deslanchou tanto mais quanto pudesse prever. A amizade entre os dois trouxe frutos tão virtuosos que se arrependia das chances que lhe protelava, reduzindo-o à função de aprendiz.
Sobretudo, aproximou-se da filha, conhecendo suas questões. Ciente das suas dificuldades, propiciou-lhe contatos fabulosos para a carreira de arquiteta. Ela, que resistia em recorrer à influência do pai, recebeu a ligação de um de seus clientes, um poderoso executivo do ramo das construções e viu seu escritório decolar como se tivesse as asas de um anjo.
Ela, que andava meio dividida. Não lamentava a vida que tinha nem tampouco o pai famoso e provedor, mas se ressentia do seu calor e da sua presença, decisiva em muitos casos. Preferia se manter solitária, batalhando e sofrendo quietinha os bons negócios que não fazia pelo empurrão que o pai não dava. Naquele dia, naquele contrato milionário com o construtor associado e a platéia aplaudindo a nova arquiteta, ela olhou o pai de longe, sorrindo-lhe com palmas de orgulho e se emocionou.
– O senhor precisará fazer exercícios constantes. Uma caminhada a passos rápidos por 1 hora, todos os dias. Se puder pratique um esporte relaxante; talvez natação.
As palavras do médico foram respeitadas. E ele se lembrou de tantos colegas e conhecidos da profissão que eram também excelentes nadadores, jogavam futebol todos os fins de semana. Os sinos dobram por eles, lembrou. São ótimos profissionais e ainda têm tempo para cuidar da saúde.
Para a sua ele não dava importância, enfiado com suas planilhas, preocupações e extratos. A esposa e os filhos tomavam sol com os parentes e amigos e curtiam o verão. E o publicitário apagando incêndios, entranhado em reuniões, rodando o país. Era quem pagava as contas da família, quem sempre fora o provedor, quem estava à frente da renda.
Ele então revigorou-se. Obedecendo os conselhos médicos, bem cedinho mergulhava na piscina da casa e nadava o quanto podia, nadava e flutuava, pensando na vida. Numa dessas avaliou a sua realidade: não era assim tão nova para ele. O mesmo negócio, as mesmas pessoas e a mesma rotina apenas sob perspectivas diferentes. Seu júbilo na água se deu quando se sentiu uma pessoa mais participativa. Pela primeira vez colhia os frutos de relacionamentos verdadeiros. Seus amigos, que não o abandonaram nos momentos difíceis, fizeram-no perceber que legitimamente o consideravam. Entendeu definitivamente como procedia a amizade sincera. E desejou que os sinos dobrassem por eles.
– A sua toalha, querido! -disse a esposa, na beira da piscina. E o publicitário, sensibilizado que estava, olhou-a com ternura. Não vamos nos atrasar, continuou, a missa começa às 10 horas. Como era apaixonado por aquela mulher, a esposa mais companheira da face da Terra, que vivia às suas voltas, procurando-o com os olhos e com o coração. Ela quem sempre o apoiara, quem sempre lhe dera forças e sempre se mantivera fiel; com que orgulho se olhavam!
Ela quem o trouxera de volta à religião, a quem sempre fora fervoroso mas que os negócios distanciaram. Agora ela o levava de volta, na manhã daquele domingo sereno e caloroso. Ao final da celebração, a família reunida e aos badalos da igreja, ela vai dizer-lhe baixinho no ouvido:
– Querido, os sinos dobram por você.

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