Um conto de Natal

É uma família média. De classe média, por que moram em três: o menino, a sua mãe e o padrasto; o pai mora no céu. A renda da casa não é grande coisa e a vida deles estacionou: com as dívidas, não sobra nada para a diversão. Assim, depois do cansativo dia no trabalho eles se reúnem à frente daquela manual e velha televisão para um momento de lazer.
O padrasto ralha do aparelho e se afasta dele pior do que se achega. Levanta-se furioso do sofá num sobressalto e cospe os marimbondos que brotam daquele peito rabugento. Dispara contra as emissoras, que só fazem transmitir sandices e nulidades pela sua televisão. A mãe, coitada, ainda se cansa com a fúria do amásio. O menino sobra sozinho, posto na penumbra da ausência dos dois, com a luz da tevê a iluminar-lhe os olhinhos, refulgentes com as ofertas de Natal. Decide desligá-la; aquela coisa controversa que o convida a comprar o que não pode. Antes de dormir ele se cobre, reza para o anjinho da guarda e pede ao Papai Noel um pouco de alegria para a sua casa, que considera mais importante que o brinquedo visto há pouco.
É verão e o calor do dia traz chuvas à noite. A mãe também faz seu pedido e o padrasto dorme ruidoso. No resto dos cômodos há outros que têm seus desejos: os objetos, os aparelhos; a alma da casa deseja ordem e paz para o lar.
A televisão está triste pelo que presenciou. Tinha conseguido irritar o padrasto com péssimas notícias e anunciar para o menino um vídeo game impossível. Do alto do armário, desejou também. Mesmo velhinha queria um dia transmitir um bom programa, que enchesse o coração dos seus telespectadores de alegria, fé e esperança. Lembrou-se das suas glórias: a sala lotada à sua frente nos jogos da seleção; gente sorrindo, de abraços e beijos, compartilhando um dia feliz! Quanta novidade contou: da economia, do homem no espaço, dos outros planetas, dos outros países; quantos segredos revelou, aos olhos do mundo!
E agora lá estava, abandonada, sofrendo da carência de atrativos. Há tempos reunia à sua volta gente culta e interessada, procurando pelo seletor um programa edificante, proveitoso e inteligente. Mas, desde que inventaram a audiência os mais instruídos têm preferido boa música e boa leitura. Assim, restou-lhe transmitir shows de bundas, peitos e rostinhos bonitos. Sentia-se até envergonhada com as coisas que mostrava; ela, uma decana televisão. Então, naquela noite relampadejante, rogou ao bom velhinho que um dia transmitisse um programa interessante e construtivo; que não quebrasse sem antes ver a sala cheia outra vez.
Os estrondos da chuva se seguem e de tantos que são, uma eletrizante descarga desce antena abaixo até levar a magia dos céus àquela televisão.
A manhã seguinte é como sempre. O padrasto sai carrancudo e responde descortês à gentileza da mãe. Por sua vez, ela prepara o filho para escola, cujo ônibus não tarda em apanhá-lo. Algumas horas depois vem de volta, de uniforme sujo e lancheira no pescoço, cheio de beijos e histórias.
Os dois almoçam juntos e a mãe parte para o trabalho quando chega a avó. Idosa, recosta-se na poltrona e cochila ao lado do menino, de lápis e caderno, deitado no chão. Ele liga a tevê e se senta à sua frente, meio desatento. E tem uma surpresa. Todos os canais passam a história de um menino pobre, que adora a mãe, tem medo do padrasto e o mesmo nome que o dele. Vê um anjo com asas que desce do céu e tem impressão de conhecer o ator. Ele diz ao menino para ter esperança e acreditar em si mesmo que ainda será um grande homem. Que será dono das suas escolhas, mais ou menos como mudar os canais de uma televisão: ele pode selecionar ao que assiste, os programas da sua preferência, pode mudar se quiser, segundo a sua vontade; pode sintonizar uma estação alegre caso se sinta triste ou optar por um livro caso se sinta perturbado. O anjo abraça o menino e lhe diz para ser feliz. Em seguida a tevê desliga sozinha e só volta mais tarde, com a programação normal.
Enquanto é menino sua mãe vê o amásio deixá-los. Ao contrário do que esperava, sente que ela está aliviada. Chega o dia de Natal e encontra pessoas que há muito não tinha notícias, sem saber que evitavam a sua casa pela presença do padrasto. Observa a alegria da mãe como há anos não via e na noite em que ganha tantos presentes, agradece ao anjinho e ao Papai Noel a entrega do seu pedido.
No ano novo e nos seguintes o menino se transforma num moço cheio de luz. Do alto do seu brilhantismo vai parar numa emissora de televisão como estagiário. Amadurecido vai olhar com a mãe as fotos do pai que nunca conhecera. Formado vai ter idéias geniais e galgar postos sobre postos no começo da carreira.
Um dia dão-lhe a responsabilidade de produzir um programa. Honrado, pede tempo para criar. Refletindo sobre um modelo ideal, sobre as escolhas de cada um, como se a vida fosse uma grande televisão, lembra-se daquela tarde pretérita, às vésperas do Natal. Lembra-se do filme e do anjo. De tão marcante, guardara o seu semblante, o mesmo que vira nas fotos da mãe: o rosto do pai. E se emociona.
Ele entende a mensagem: se a vida é uma questão de múltipla escolha, bastava que proporcionasse ao público um programa valoroso, instrutivo e acrescentador. Assim ele fez. Pôs no horário nobre uma hora de cultura genuína e educadora; uma criação sua para todos os lares do país: uma febre; recordes de audiência, fama e dinheiro.
E, na sala lotada, onde a família está reunida e feliz, prestigiando o filho ilustre, aquela velha televisão manual, orgulhosa da sua história pressente a chegada de outro modelo, de tela plana e controle remoto. Mas só quebra depois de ter sido feliz outra vez.

Um comentário:

Alexandra Deitos disse...

Nelson Rodrigues dizia que a televisão matou a janela.
São tantas e tantas coisas que giram em torno da televisão, desde o obejto em si até coisas muito mais distantes do que é palpável.
Texto bacana!
Abraços,