A formiga

Seria natural se para ele surgisse um indício. Qualquer coisa. Um sinal de reação, uma boa notícia. Era um dia assombroso, cinza e frio, embora o sol escaldasse lá fora. Uma tarde negra, que trataria de esquecer. Trataria, se não fosse aquela formiga. Uma criaturinha toda graciosa, mirradinha e pressurosa, procurando atabalhoada o seu caminho como se estivesse num imenso labirinto invisível.
Seria natural que o rapaz lhe desse um peteleco, para que lhe atirasse a vida. Só que estava meio apático, num estado que levantar o braço custava esforço. E a formiguinha lá, à toda brida, subindo às suas vistas em despreocupada escalada. Em vez de arremessá-la ou se meter a esmagar o seu corpúsculo, ele sentiu ternura. Aquela coisinha frágil, minúscula, perdida que estava, morrer daquele jeito. Mirou o seu tamanho, sua delicadeza e sentiu o desconforto da covardia; imprensar uma criaturinha inofensiva de Deus.
Um afeto brando veio ter com os seus botões e uma simpatia benigna pelo bichinho fez alterar o estado do seu espírito. Daquele vazio triste e indevido brotou uma suave complacência e ele se afeiçoou à formiga como paixão à primeira vista.
Ainda acompanhou sua trajetória desenfreada, reta, curva, ondeante, até que ela parasse, de súbito, de frente para ele, mexendo as antenas com ar de arreganho. O rapaz sorriu de um lado a gratidão pelo inseto. Que o fizera perceber a miudeza, a debilidade, a desorientação e a insolência. Mesmo desvantajosa, escalara o braço do rapaz com polida desenvoltura. Depois se estancou como se fosse descoberta e estava a observá-lo com suspeição. Na pior das hipóteses sairia em desabalada pirambeira e se esconderia na almofada.
Em vez disso o rapaz esticou o dedo até ela e o pousou ao seu lado que nem degrau de espaçonave. A formiga andou até ele e escalou unha acima até se levar à palma. Então o moço se levantou, andando até a cozinha de mão aberta, exibindo o inseto feito bandeja. Aterrissou-a na pia, onde a formiga desceu vagarosa. Caminhou ali ao lado como se esperasse por algo, meio hesitante. O rapaz empunhou uma colher e a acomodou, lotada de mel, a dois passos de formiga a seu lado. Ela divisou aquele castelo de açúcar suculento e se decidiu pelas beiradas, com comedimento. Foi bebericando por cima do utensílio sem nenhuma pressa e sem se dar conta da boa vontade do humano. Nutriu-se a contento até se afastar para perto dali em seguida, quando se deu por satisfeita.
Sim, ele esperou. Esteve todo o tempo por ali, de olho na formiga, admirado que estava, quase patético, ligado à sua coragem. Mesmo diante de novos insetos, atiçados pelo perfume da colherada, o rapaz cuidou da sua protegida, espantando-os com um assopro direto e poderoso.
Depois fez escadinha para ela de novo e os dois foram juntos ao sol das cinco, que não queimava nem fazia mal para a pele. Baixou a mão até a grama para a formiga descer e ela pousou ao seu lado, aonde se manteve imóvel sob os olhares do moço. E estava revitalizado, doído mas surpreso; estava encantado por fatos inexplicáveis, como se a encantada fosse a formiga, dócil daquela maneira.
Ficaram até bem mais tarde, ao crepúsculo do dia. Avaliando por fim as necessidades do bichinho, encheu uma pequena caixa com um punhado de terra, um dedal com água e outro com mel, picou umas folhas bem verdes e as salpicou por cima da terra como se fosse neve. Levou a formiguinha para dentro da caixeta onde a pousou, imperiosa que estava, de antena empinada.
Depois transportou o improviso para dentro da casa, assentando-o sempre perto de si. A todo momento esteve com ela. Descongelou e jantou na sua presença, lançando para ela uns restos de salgado e lascas de sobremesa, para seu júbilo. Sentou-se a seu lado na poltrona e se esticou à frente do telejornal onde, cansado, o rapaz dormiu.
Vai! Corre! Agora! Vai! Agora! Eram as mensagens que chegavam pelas suas antenas de parentes e amigos, que acompanhavam aflitos o seu apuro. Espalhados pelos arredores, eles viam naquele instante o ideal para a sua fuga.
Receou então por todos eles. E se o gigante fosse vingador, capaz de folear o formigueiro, envenenando todas as gerações? E ela, justo ela, que permanecera tanto tempo sob as vistas do humano, posando de boa formiga, tomando da sua água e do seu mel, comendo das suas folhas; agora que poderia largar terra para as favas estava temerosa da reação do predador; já ouvira casos terríveis de mirmecocídio.
Então, corajosa que era, a formiga se escapuliu. Enfiou-se no meio da sua turma e, juntas, esconderam-se sem pestanejar. Felizes estavam com o regresso da desaparecida, mas trataram logo de planejar o que viria pela frente, de olho no humano.
Em seguida ele desperta, atordoado. A televisão chuvisca ligada e ele, trôpego, vai sonambulando para o quarto, onde só consegue arrancar as roupas e abrir as janelas, antes de desmaiar de cansaço.
As formigas ficaram em polvorosa. Passaram a noite em claro e sob a ansiedade de milhões de possibilidades. As mais sábias aconselhavam o salve-se quem puder: a qualquer hora o rapaz poderia acordar sobressaltado e se insurgir contra a ingratidão do inseto desertor. Poderia ter um achaque de loucura e partir alucinado para todos os formigueiros que encontrasse pela frente, dizimando as milhões de conterrâneas que viviam naquelas cercanias.
O dia amanhece e as formigas estão todas preparadas. Entre as intelectuais e as operárias houve um consenso e cada qual do seu cantinho observa os passos do humano. Ouvem os seu ruídos e trocam mensagens entre si, espalhadas pela casa.
De lá do quarto, ele bate umas gavetas, fecha as portas dos armários, entra e sai do banheiro, todo arrumado. É aí que vê o sumiço da formiga. Então ele joga no lixo o improviso que construiu com papelão, dá uma última arrumada em tudo, leva as chaves para a portaria do hotel e vai-se embora para nunca mais ser visto.

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