Dom Quixote

Na meninice era quieto e observador; na adolescência já dava sinais de discordância e na maturidade se revelou. Um menino mirrado, um jovem justo e uma adultidade patente. Teve o tempo de assimilar na sua latência a peculiaridade do seu caráter: não era um homem normal. Crescera diante de percebidas injustiças sem nada poder fazer contra o mundo dos adultos. Os desonestos se espalharam pela sua juventude e, mesmo rocinante, tinha o entusiasmo de um corcel. Mas foi mesmo na madureza que tomou ares manifestantes como se cursasse até então a escola dos varões assinalados.
Tornou-se a personificação da dignidade, um homem correto, defensor dos bons princípios. Conquistou uma esposa respeitosa na maioridade e na igreja selaram um compromisso até que a morte lhes separou, deixando-lhe inconsolado para perpetuar a maior obra dos dois: o filho menino, abençoado fosse, crescido rapaz com a sua retidão. Mas lhe bastou advir à consciência para perceber que o pai não era como os outros.
Num belo dia, quando voltavam da escola do menino, divisou um senhor de idade cambaleante, sozinho com suas compras, vagaroso pela calçada. O pai fez a conversão para a outra pista, emparelhou o ancião e estacionou o carro, dirigindo-se a ele. Com a sua voz mansa e jovial, sugeriu-lhe uma carona para casa, a fim de facilitar-lhe o encargo de carregar aquelas sacolas todas de supermercado. O senhor, com um jeito meio desconfiado, ainda questionou o porquê da oferta antes de dizer que agradecia mas estava perto de casa. O filho achou tudo aquilo meio estranho, mais por que nunca vira atitude igual na família dos camaradas.
O pai lhe dizia coisas e ensinamentos, mas o menino voltava dos amigos cheio de dúvidas. Na escola, nas reuniões, nos trabalhos em grupo e nos seus passeios, ele via duas realidades muito distintas: a do pai, zeloso com o próximo e a dos amigos: diligentes apenas com eles mesmos. Educado mas impetuoso, o filho vai experimentar das duas. Vai ver o pai se meter em confusão para apartar uma certa briga que dela nem tem parte. Vai ver a atuação do pai aonde não lhe cabe, apenas pela aversão às contendas. Enfim, vai ver o pai ser alvejado por murros e pontapés, um caco de vidro que lhe descola a retina e lhe rende pontos e problemas por um belo tempo. Com isso, o filho vai achar que talvez os amigos é quem tivessem a razão: aplaudir o circo pegando fogo.
Depois disso, já moço, vai consolidar a distinção do pai. Vai vê-lo discutir por centavos, reclamar por justiça nas repartições e filas públicas e outras pequenezas que os outros pais não fazem. O pai é de outro mundo, compra dor de cabeça e estresse por pouca coisa.
Ocorre que ele é um puritano. Faz os indolentes darem seus lugares no metrô para os idosos; na sua falta, ninguém se importa. Na rua ensina uma criança que papel de sorvete é no lixo que se joga e a mãe fica ali olhando como se a incumbência fosse dela. No cinema se insurgia contra os inoportunos que lhe atrapalhavam a diversão.
Tinha questionamentos sobre a educação daquele povo, que passava no sinal vermelho, parava na faixa de pedestres e colocava em risco a integridade dos demais. Gente que atrapalhava o trânsito, que discutia em locais públicos, que batia na esposa e nos filhos. E, quando andava pela pobreza, mulheres e crianças dormindo ao relento cobertos por jornal, entrava em parafuso. Levava comida, agasalho, mandava cartas para deputados e senadores mas a miséria continuava lá.
Em um dia bom acordava vigoroso, saía fundando ongs contra a fome e contra o frio e distribuía sopa quente, trabalhando nas madrugadas. O filho até ajudava, mas já se mantinha a distância. Em um dia ruim acordava entristecido; bancar a correção tudo outra vez como se sobre ele se abatesse a tragédia de Sísifo, rei de Corinto.
Mesmo assim se manteve firme ao seu propósito. Deparou-se com um cão atropelado, esticado e morrediço sob um grupo de curiosos que olhavam para ele sem nenhuma iniciativa. Na mesma hora acionou a ambulância e foi também acompanhar o veterinário, salvando a vida do bichinho. Ficou sem telefone o mês seguinte a troco de custear o episódio, mas aquilo não tinha preço. Para o filho custou caro, sem contato com os amigos. A essa altura, já alheio aos seus achaques, o moço procurava o avô e a tia para amenizarem a dificuldade que tinha. Inteirados das ocorrências, temeram a sanidade do pai, que se agravava desde a morte da esposa.
Quando os dois viajavam, numa estrada comprida e cansativa, onde presenciaram um grave acidente, as coisas pioraram de vez. O carro, rebentado e de rodas para cima, ainda girando pelo frescor da capotagem, jazia deserto caído de lado. O filho, cauteloso, pediu que seguissem adiante, sob a suspeita de assalto. Mas ele ainda brigou com o rapaz um pensamento daqueles. Parou em primeira instância para socorrer os acidentados, com toda volúpia avançou de peito aberto, procurando os feridos e alarmando o resgate. Aflito com o horror daquela cena ele correu contra o tempo. Mas se surpreendeu como o filho previra. Do meio do matagal do acostamento, homens armados e encapuzados avançaram sobre ele com voz de investida. Tomaram-lhes o carro, os pertences e a boa-fé, levando-os depois num curto seqüestro até a rua da amargura.
Morando com o avô e a tia, o filho agora o visitava sempre. Teve ainda tempo de descobrir que o pai enfrentara bandido de arma na mão, ameaçando a carteira de uma senhora na rua, antes de cuidar da sua segurança.
Naquela hora o pai rabiscava, só e escondido, à noite e com a ajuda das luzes das velas, suas fartas memórias. Internado num manicômio sob a alegação de ser Dom Quixote, séculos depois de ter nascido pela primeira vez, tinha ressurgido para deixar uma mensagem de caridade, dedicação e amor. Do alto da sua sanidade, não poderia partir sem escrever seu legado.

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