A origem da tragédia

Tudo começou com um olhar. De atração, de impulso, de longe. O coração do rapaz exigia manobras e o da moça fazia os seus lábios sorrirem. Um encontro ocasional, no princípio de uma noite escura e fria, numa taberna irlandesa. As olhadelas de esguelha redundaram em uma aproximação natural e amável, que o destino iria abençoar.
Foi simpatia à primeira conversa e os dois seguiram noite adentro trocando afinidades. Quem os visse juraria que se conheciam há muitas vidas, sorrindo com a desenvoltura de velhos amigos. Entre os minutos de silêncio, os olhares eram tímidos, depois desviados, para não transparecerem uma ponta de interesse. As horas passaram evocando dos dois um sentido reencontro, mas voaram como as folhas lá fora, alçadas pelos ventos gelados. Por causa delas os dois se despediram dos conhecidos e ele acompanhou a moça até a sua casa, um sobrado rústico e vistoso encravado na encosta.
Admirada, a moça sonhou um conto de fadas, tendo a sorte de encontrar um distinto cavalheiro. Por seu turno, o rapaz desejou vê-la de novo, sua beleza, seu recato, seu sorriso. Um sentimento de gostosa descoberta bateu em seus corações, como se descobrissem partes de si mesmos. Tantas semelhanças fizeram que acreditassem na existência de algo mais. De pensarem um no outro com tanta assiduidade, uma certa sintonia os levou aos mesmos lugares, nos mesmos momentos. Por vezes não se viam, no trânsito intenso de pessoas, no caos dos mercados e ocasiões de movimento. Algo lhes dizia que estavam por perto e o reencontro beirava à flor do acaso.
No ímpeto de reencontrá-la circundou seu endereço, perto das montanhas. Andou meio hesitante, entre o ardor de revê-la e o temor da imprevisão. Chegou até lá, onde nada aconteceu e se sentiu tolo. Desde sempre acreditava na espontaneidade; tudo na sua vida de mais gostoso e mais belo acontecera naturalmente. Assim, sob a acusação de heresia, o superego do rapaz censurou-lhe a atitude e ele tomou resignado o caminho de regresso
Bastou pouco tempo que então a encontrasse, voltando para casa de cesta na mão. Trazia punhados de frutas maduras e sobre um ombro descoberto alguns cachos castanhos, meio presos, meio caídos, faziam destacar o seu rosto angelical. Ao vê-lo, deteve-se por um instante, esperando pela sua chegada. O rapaz se aproximou vagaroso, surpreendido pela sua aparição naquele contexto. Foi até ela sorridente e lhe disse com graça e simpatia um alegre cumprimento. Tentou justificar a sua presença por ali mas, com doçura, a moça meneou a cabeça e num psit sinalizou que ele não precisava se explicar. Disse à jovem como é linda à luz do dia. A pele clarinha, o olho expressivo, os lábios rosados. Encantadora. Ela, meio tímida, agradeceu os galanteios. O rapaz se ofereceu para lhe carregar a cesta, ao que ela assentiu. Perguntou-lhe depois como tinha passado aqueles dias. E assim foram caminhando até a entrada da casa, contando risonhos as novidades um do outro. O rapaz disse à moça que pretendia embarcar para a América atrás de uma vida melhor, o que ela no íntimo se condoeu. Por poucos minutos conversaram sobre o assunto, em voga na cidade. Na despedida o moço segredou-lhe o desejo de vê-la novamente e os dois marcaram para a tarde.
Os Senhores da Casualidade se deram por satisfeitos. Encaminharam dois jovens puros e belos, afeitos à família e de raro valor. Tinham esperanças de construir um lar modelo para o município de Queenstown, onde vivia a falta de expectativas. Queriam uma família feliz e batalhadora, que mostrasse para todos o poder da coragem e da disposição.
Naquela tarde os dois se encontraram, conversaram suas vidas, descobriram novos comuns e marcaram novos encontros. Nos novos encontros tornaram-se próximos, freqüentaram seus planos, passearam e ficaram amigos. Amigos, trocaram confidências, gestos de carinho, palavras de estima e, num dia garoento, um beijo apaixonado. Debaixo de chuva, como se o destino abençoasse aquela união, o beijo redundou em cumplicidade, afeição, carinho e amor: uma sensação poderosa, uma disposição inabalável, uma força motriz sem precedentes, que impulsionou o mundo dos dois. Nas dificuldades bebiam da fonte de suas paixões e juntos superavam os seus obstáculos. Das dificuldades nasceu a lealdade e depois o companheirismo. Do seu ventre nasceu um menino, do rebento nasceu a necessidade de uma vida melhor e dela se reacendeu um longínquo questionamento: a possibilidade da emigração.
Mesmo vivendo juntos as intempéries da cidade irlandesa, aqueles jovens, feito então um casal amadurecido e responsável, tinham planos grandiosos para a família. O pai queria proporcionar-lhe um porvir digno e abundante. Naquelas condições e sob os empecilhos daquela realidade, tinha o sonho antigo de construir com seu esforço e sua garra um farto futuro para o lar. A esposa era contra, sustentando-se na presença dos demais familiares, dos amigos e conhecidos, no patriotismo e na força da superação. Contra os seus argumentos reconhecia as poucas expectativas que lhes restavam pela frente. O vislumbre que tinha o marido do outro continente – não confessava – mas lhe trazia uma esperança.
Tantos da sua cidade se preparavam para a partida, embalados na fantasia de um mundo melhor. A agitação na cidade rendeu discussões ao casal, sem que contudo lhes faltasse o respeito. O marido era bom argumentador e as suas intenções eram irretocáveis: todas em favor da unidade, pelo filho e pelo amor da mulher. Quanto a ela, queimava-lhe no peito a distância dos pais. Os dela pensavam no neto: no crepúsculo de suas vidas queriam um menino guerreiro e de renome, que talvez Queenstown não pudesse render. Os dele apoiavam o filho, um lutador de primeira grandeza que um dia voltaria a visitá-los, feliz e bem sucedido. A esposa viu-se sozinha na idéia da permanência e, contrafeita, decidiu embarcar na cruzada do marido.
No ato seguinte, o maior navio construído pelo homem em toda a sua história, tido como insubmergível, chega de Southampton para apanhar os irlandeses com destino a New York. Na terceira classe, a família embarca então para nunca mais voltar.

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