Os desígnios da roça

O trânsito caótico das cidades grandes deixou de ser um assunto novo há décadas, já que há bastante tempo se vem discutindo os engarrafamentos nas ruas das pequenas também. Recarregado da paz da fazenda, vejo a impaciência diariamente estampada por detrás dos vidros dos carros; pressa e indisciplina maiores do que educação e diligência.
Ainda essa semana uma ambulância não conseguia entrar no hospital para onde se destinava, em decorrência de uma fila indiana de carros que insistia em não parar para que ela pudesse atravessar da avenida até o estacionamento, alguns metros dali. Um bom samaritano, observando à cena de longe, aproximou-se à pé para barrar o carro seguinte. Eu sei por que quem estava na ambulância era nonna mia.
Nonna mia sofreu uma queda doméstica, fraturou o fêmur, foi hospitalizada e passou por uma cirurgia para a colocação de uma placa de platina. Ainda em recuperação sofreu nova queda, nova fratura – o fêmur da outra perna –, e nova cirurgia, prestes a completar 94 anos.
Diante do espanto dos médicos e enfermeiros com tamanha força e vontade de viver, foi natural que eu associasse sua surpreendente recuperação à sua vida atrelada à natureza e ao seu pendor para a simplicidade. Nonna mia viveu na roça grande parte da sua trajetória, onde vivia à luz dos lampiões, cozinhava no fogão à lenha, banhava-se sob a água que ela mesma esquentava e cantava sob o som de violas e acordeões, sob a noite alumiada pelo calor da fogueira, ao par da vizinhança, da família e dos amigos. Livre da influência de industrializados, pisando a terra viva, absorvendo o ar puro do campo e a simplicidade da roça, cresceu mais forte que os seus netos e bisnetos, vorazes consumidores de fast-food, de tecnologia e de poluição.
No mundo das charretes não havia trânsito, a não ser o de gansos e galinhas d’angolas que voavam para dar passagem, pelo desígnio da sobrevivência. No mundo das ambulâncias os burros e os espíritos de porco voam sem dar passagem, pelo desígnio de imprudência.

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