Um furacão de liberdade

O parisiense Jean-Paul Sartre (1.905-1.980) não teve infância. Perdeu o pai logo aos 15 meses, quando foi levado pela mãe ao amparo do avô materno em Meudon, em 1.906. Até os 10 anos cresceu cercado de atenção, estudando em casa com professores particulares, mas distante das outras crianças.
Simone de Beauvoir (1.908-1.986) já sabia, aos 15 anos, que seria uma escritora. Aos 21 já se tornara imbatível em Gottfried Leibniz, estudando o filósofo alemão com o afinco de um castor.
Os dois se conheceram na mais prestigiosa universidade francesa, a Sorbonne, onde estudaram juntos para a Agrégation – uma espécie de concurso para se tornarem professores na entidade – em filosofia, o que também obtiveram juntos, com louvores, em 1.929: Sartre foi aprovado em primeiro lugar; Beauvoir, em segundo.
A história da afinidade entre os dois, de como se conheceram, de como se enamoraram e de como estabeleceram uma inusitada relação poligâmica pode ser encontrada em várias autobiografias, entre as quais se destacam “As palavras” (Le mots, 1.964), de Sartre, e “Memórias de uma moça bem comportada” (Mémoires d'une jeune fille rangée, 1.958), de Beauvoir.
Baseado em tanto material disponível, o filme “Os amantes do Café Flore” (Les amants du Flore, 2.006) percorre, a partir da Sorbonne, a trajetória dos dois: a precocidade, o amor pelos estudos, o amor pela filosofia, o amor pela literatura, o amor de um pelo outro e os amores de um e outro pelos outros – e outras. “Não tenho vocação para a monogamia – diz Sartre a Beauvoir –, sou um escritor, preciso de ar, novidade, emoção. Só preciso de você, mas preciso de amores eventuais.”
O filme recende filosofia. “Jure, por Heidegger”, diz uma amante a Sartre. Os entremeios do existencialismo, baseado no qual o homem é o responsável direto pelo seu destino, abrem-se sob as suas figuras centrais – incluindo uma participação de Albert Camus –, expondo mais o cotidiano e o comportamento do que o aprofundamento filosófico.
Como mulher, Simone de Beauvoir sopra novos ventos: atribui a infelicidade não à Providência Divina, mas à hipocrisia nas pessoas, a austeridade nas famílias, a reclusão do casamento. “O seu marido teve que morrer – diz à mãe, historicamente subserviente ao pai – para que você sonhe com um pouco de felicidade.”
Como escritor, filósofo e personagem, Sartre é um aguilhão. Atropela ritmos, preceitos, convenções. “O respeito à instituição paralisa – diz à classe, depois de boxear contra um aluno que hesitara golpeá-lo –; quero cérebros livres! Garanto a vocês que terão mais êxito que os outros cursos.” Como filme, “Os amantes do Café Flore” não é só biográfico, é instigante. Parece eleger seu par de protagonistas para incentivar não só um ao outro, mas em quem lhes botar os olhos. “Sacuda-se –, diz Sartre a Beauvoir – senão terminará sendo uma senhora”! “Pare os violinos!”, “temos que soprar um furacão de liberdade no mundo!”

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